Perseguindo Mário Quintana
Como se avançasse por um pequeno poema, chegando ao fim de cada verso e continuando no seguinte, chegando ao último verso e voltando ao primeiro, relendo, segui Mário Quintana pelas ruas de Porto Alegre. Ele caminhava devagar, idade ou falta de pressa; eu tinha de conter a minha euforia. Por isso, para disfarçar, parei diante de vitrinas. Fingi-me interessado por artigos diversos enquanto, na verdade, aproveitava para acertar o penteado num reflexo, aproveitava para reconhecer-me na representação da minha própria imagem.
Ao longo dos anos, no cinema ou na televisão, assisti muitas vezes a filmes de detetives, perseguições misteriosas com desfecho incerto. Era exatamente isso que estava a acontecer ali. Enquanto perseguia Mário Quintana pelas ruas de Porto Alegre, escutava uma trilha sonora no interior da minha cabeça. Agora parece-me que talvez essa música fosse o jeito de falar das pessoas com quem nos cruzávamos, gente de todas as idades, homens mais velhos ou guris, torcedores do Grémio ou do Inter. Apesar da diferença de velocidade, houve ocasiões em que quase perdi Mário Quintana. Na Rua da Praia, por exemplo, dissolveu-se na multidão gaúcha, poeta do povo; encontrei-o logo a seguir, citado por todos.
Mas seria mesmo ele? Vários leitores de prosa a quem contei este caso duvidaram, acharam que aquele não podia ser o poeta. Como se apresentassem razões categóricas, informaram-me que Mário Quintana morreu em 1994. Também sei fazer contas de subtrair e recuso trocar argumentos com quem não entende as características elementares da poesia. O passado e o presente são sobretudo tempos verbais. Mário Quintana transforma verbos em substantivos, passarão, passarinho, com muito mais facilidade converte qualquer particípio em presente do indicativo. Esse tempo que passou não é diferente daquele que está a passar, olhemos em volta, ou daquele que vai passar sobre este instante e que, em contas futuras, retirará atualidade ao que somos agora, como se lhe retirasse importância. Sim, era mesmo ele, tenho a certeza absoluta, segui Mário Quintana pelas ruas de Porto Alegre. Ainda estou lá a segui-lo.
E pode acontecer que as praças rimem com as avenidas, a Praça da Alfândega rima com tudo. Pode também acontecer que as avenidas sigam quase até ao fim da página, versos que não podem terminar antes da duração que merecem, sílabas como pedras na calçada, versos seguidos por pequenas vielas de três ou quatro palavras, igualmente essenciais para se chegar ao destino. Mário Quintana avança pelas ruas de Porto Alegre, encontrei-o lá, distingui-o com estes olhos, os únicos que tenho, e segui-o. Cumprimentava todos os que enchiam a cidade, era cumprimentado por todos também, ninguém lhe atravancava o caminho. Mas não precisam de ficar pelas minhas palavras, tomar como garantia apenas o que digo. Quem não acreditar, vá ao Rio Grande do Sul e procure, não é longe, Porto Alegre está em qualquer boa livraria, na secção de poesia, sob a letra Q.
Texto de José Luís Peixoto
Foto de Lua Vazia
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