Lembrança de Pitões das Júnias
Ao longe, Pitões das Júnias. Esta distância pode ser comparada àquela que permite uma paisagem estendida, as casas centradas nas montanhas, mas é maior ainda, é mais longa. Esta é a distância da memória, imagens atravessam-na: a minha mão pousada sobre o granito, o toque do granito na pele, o áspero e o macio, o musgo seco no verão, o musgo inseparável da pedra, a transformar-se em nódoa e, depois, a transformar-se em pedra.
Ao longe, Pitões das Júnias. Uma mulher, antiga e ligeira, viúva, a escolher o lugar onde pousa cada passo. Quem não conhece esses paralelos de granito que cobrem as ruas? Foram colocados um a um. Os calceteiros seguraram-nos na palma da mão, escolheram-nos. Antes, houve esse toque, pele e pedra, só depois houve geometria, todas as linhas que os paralelos sugerem, oblíquas, perpendiculares, a formarem quadrados e losangos, linhas imperfeitas, figuras imperfeitas, como a vida, ao contrário da natureza.
Ao longe, Pitões das Júnias. O vento traz o som de badalos pendurados no pescoço de cabras. Todos estes tons de verde são a sua felicidade. Estes animais enchem a boca de verde e sobem pela barreira mais inclinada. Não haja dúvidas, se houvesse caminho até às nuvens seria por aí que seguiam. O homem do cajado já não tem idade para acompanhá-las nessas avarias. Noutro tempo, em rapaz, ia buscá-las onde fosse preciso, galgava por pedras, agarrava-se a estevas, e não havia bicho que lhe escapasse. Agora, usa de outros truques. As cabras têm-lhe respeito, são sossegadas; se há alguma mais arisca, o homem joga-lhe o cão, que também é velho e manqueja um pouco, mas ainda sabe ladrar.
Ao longe, Pitões das Júnias. Lá de cima, vê-se todo o concelho de Montalegre e, com certeza, seríamos capazes de acreditar que se vê o mundo inteiro, não fora a triste evidência de não se distinguirem os filhos desta terra, espalhados por tanto lado. Afiamos os olhos para achá-los na paisagem, mas não há sinal dessas crianças que deram voz a estas pedras. Fazem muita falta aqui nas tardes de domingo, em fevereiro, março, abril, no outono. Fazem muita falta durante todos os dias e todas as horas.
Ao longe, Pitões das Júnias. Aqui, não importa onde, lembro-me agora daquele telhado caído, daquelas paredes que ainda resistem, pedras sobrepostas para sempre. Cresce uma árvore e mato no centro dessas ruínas. Houve quem dali saísse todas as madrugadas e regressasse sempre ao anoitecer, houve quem ali fizesse o lume todos os dias, houve quem ali nascesse e houve quem ali morresse. No silêncio, ainda se sente o nervosismo das galinhas soltas pelas ruas, os seus olhos hipnotizados numa cisma; ainda se sente a lenta passagem das vacas, o choque pesado dos seus passos nas pedras; ainda se sente tudo o que se imaginava para este tempo.
Ao longe, Pitões das Júnias, como um segredo, como musgo, como todas as lembranças coladas às paredes do Mosteiro de Santa Maria das Júnias, da Igreja de São Rosendo ou da Capela de São João da Fraga.
Texto de José Luís Peixoto
Fotos de Otávio Nogueira
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