Nove onze
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(Escrito em setembro de 2002, publicado originalmente na revista DNA, do Diário de Notícias.)
Toda a gente se lembra do que fez naquele dia. Mesmo as pessoas que estavam a fazer coisas que fazem todos os dias, coisas que se fazem e que se esquecem imediatamente. Os dias da semana passam, os dias do mês passam. Mudam os nomes, os números. Não há grandes diferenças entre eles. Só muito raramente guardamos lembranças específicas. Aquele dia foi diferente. Toda a gente se lembra do que fez no dia 11 de Setembro de 2001 quando eram oito horas e quarenta e seis minutos em Nova Iorque.
Toda a gente estava a fazer qualquer coisa. Eu estava em Lisboa a almoçar com um amigo. Um ano depois, exactamente um ano depois, alguns minutos antes das oito e quarenta e seis minutos, acordei em Manhattan. No dia anterior, estivera a ler todos os jornais e revistas que me pareciam conter alguma informação interessante sobre o assunto, o único assunto, a primeira página de todos eles: o dia 11 de Setembro. Francisco Goldman, o romancista filho de mãe guatemalteca e de pai de Boston, escreveu que «Não se pode odiar os Estados Unidos se não se for um demagogo cego ou um extremista ou, simplesmente, um inadaptado – os Estados Unidos são demasiado grandes, demasiado cheios de situações e de escolhas.». Foi disto que me lembrei enquanto folheava os jornais e as revistas que, abertos e espalhados, iam cobrindo o chão do quarto e cercando-me aos poucos. Aliás, a complexa árvore genealógica de Francisco Goldman é, por si só, bastante representativa da complexidade deste país e desta cidade.
Assim, depois de saber que, nos ataques de 11 de setembro, morreram 2819 pessoas de 115 países diferentes, que houve uma perda económica de 105 biliões de dólares e que foram removidas mais de um milhão e quinhentas mil toneladas de entulho, li os diversos depoimentos. As palavras das famílias de vítimas, daqueles que sobreviveram, daqueles que só muitos dias depois souberam o que aconteceu, daqueles que fazem anos nesse dia, daquelas que deram à luz nesse mesmo dia. Todos contam as suas histórias. As livrarias de Nova Iorque estão cheias de livros com as suas histórias. Neste momento, enquanto escrevo, enquanto este texto está a ser lido, em algum sítio, uma máquina está constantemente a imprimir as suas histórias. Depois, li os artigos de opinião. À partida, não seria estranho imaginar que o leque de sensibilidades poderia ser limitado. No entanto, da mesma forma que é possível encontrar todas as raízes medicinais africanas em Manhattan, todos os jornais japoneses ou australianos, todos os tipos de relógios suíços, também é possível encontrar todos os tipos de opinião. Há, obviamente, os discursos mais institucionalizados, aqueles que poderiam passar na CNN sem que constituíssem um embaraço para Larry King, mas há também o contrário disso. Há, por exemplo, o cartoon da Village Voice onde George Bush surge ajoelhado a rezar a Osama Bin Laden pedindo outro ataque. Se existem os textos que acusam tudo e todos de «anti-americanos», existem também os textos que acusam tudo e todos de acusarem tudo e todos de «anti-americanos». Existe a conhecida máxima «In God we trust», mas existe também o cartoon do jornal anarquista Shadow que diz simplesmente: «Um número gigantesco da população mundial tem óptimas razões para achar que somos uns completos idiotas.» Escreveu Francisco Goldman, «Não se podia odiar os Estados Unidos»; não se pode amá-los completamente, acrescento eu. É demasiado grande, demasiado vasto.
Em algum ponto as conversas dos americanos tropeçam sempre no 11 de setembro. Nine eleven, nove onze, 11 de setembro. Em conversas sobre Nova Iorque os americanos dizem sempre “antes do nine eleven”, e falam; a seguir dizem “depois do nine eleven”, e falam. No dia 11 (de 2002), saí a pé. Atravessei a Chinatown. Asiáticos continuavam, como todos os dias, a empurrar carros de ferro carregados com todo o tipo de caixas, todo o tipo de mercadorias. As lojas estavam abertas. Tudo estava como em todos os dias. Comprei o New York Times numa máquina de jornais. Comprei também o New York Post. Na primeira página de ambos: o 11 de setembro. Tentando encontrar marcas de algo que pudesse ser diferente, caminhei, atravessei ruas e quarteirões, olhando à minha volta. De todos os lugares saía o ruído sussurrado de rádios e de televisões que relatavam o que estava a acontecer nas ruínas do World Trade Center (WTC), o Ground Zero. Mas, para além das bandeiras americanas em todos os sítios onde é possível imaginar uma bandeira americana, não vi nada que fosse absolutamente fora do comum. As pessoas caminhavam pelos passeios com o rosto com que as pessoas normalmente caminham nos passeios de Nova Iorque. Os semáforos mudavam de WALK para DONT WALK e as pessoas, como nos outros dias, tentavam atravessar entre os carros. Entre os táxis amarelos também, claro. Fiquei com a sensação de que, como eu, também as outras pessoas tentavam encontrar algo diferente nos rostos umas das outras. Como eu, não encontravam. Passei por Little Italy e, entre os restaurantes italianos, havia homens que montavam barraquinhas de madeira. Cartazes anunciavam que no dia 12 começava a festa de San Genaro. Afinal, em Nova Iorque, também existe o dia 12 de Setembro, pensei.
Comecei a descer a Broadway em direcção ao «distrito financeiro», a Wall Street, as ruínas do WTC, o Ground Zero. À porta dos edifícios, havia gente a fumar cigarros. À medida que caminhava, o número de pessoas aumentava ligeiramente nos passeios. Nos postes, havia cartazes que ofereciam aulas de eliminação do sotaque: «Fale inglês perfeito». Entrei num bar absolutamente americano para comer qualquer coisa. Todos os empregados eram mexicanos e, enquanto comia, sob o som da rádio, sob vozes que enumeram lentamente os nomes de todos os mortos dos ataques, ouvi os empregados a discutirem em espanhol o porquê da escolha do dia 11 de Setembro. A teoria minimamente mais credível era a que relacionava os ataques com o número de telefone das urgências nos EUA, 911. Todas as outras teorias baseavam-se em operações matemáticas, adições e subtrações. De novo na Broadway, cheguei à primeira concentração de polícias. Estava a entrar no perímetro do WTC, aproximava-me do Ground Zero.
A partir daí comecei a ver cada vez mais polícias e militares. Em cada esquina, de dois em dois metros, havia polícias. Além daqueles que estavam em serviço, havia todo o tipo de polícias com fardas de gala. Enquanto caminhava passei por mais de cinquenta polícias de Londres que tinham atravessado o oceano para estarem presentes nas cerimónias. Passei por polícias de vários países, cheios de medalhas, altas patentes. Ao aproximar-me, encontrei uniformes dos mais diversos. Havia militares do exército camuflados com diversos tons de verde. Havia marinheiros vestidos de branco. Havia bombeiros com capacetes, botas e casacos luminosos. Eram os heróis.
Ao longe, comecei a ver a multidão que cercava a capela de Saint Paul. Por ser a capela mais próxima do Ground Zero, há muito que foi escolhida como local de peregrinação. Nos dias que se seguiram aos ataques, as grades da igreja eram um dos lugares onde se afixavam cartazes com fotografias de desaparecidos. Quando a esperança desapareceu, as fotografias passaram a ser não de desaparecidos mas de mortos e, aos poucos, as grades encheram-se de peluches, de flores secas, de velas e de todos os objectos que possam ser considerados um tributo àqueles que morreram. À minha volta, os vendedores de livros com fotografias do 11 de Setembro, de camisolas, de discos e de velas; os vendedores de bandeiras dos Estados Unidos, do México e de Porto Rico.
A cada dois passos havia um representante de qualquer religião que me oferecia um panfleto. Todas as religiões, excepto a muçulmana. Havia homens com camisolas amarelas onde estava escrito: «Pastor voluntário da igreja da cientologia». Havia Hare Krishnas a cantarem. Havia um coro de mulheres Quackers, a usarem vestidos austeros, impecavelmente lavados e passados a ferro. Cantavam, enquanto homens de camisa branca distribuíam exemplares do Antigo Testamento. Parei para ver um milagre ao vivo. Um pastor pousou a mão sobre a testa de um homem de muletas; disse-lhe «caminha»; homem deixou cair as muletas, deu dois ou três passos lentos e atrapalhados e, logo a seguir, começou a caminhar normalmente. Já a poucos metros da capela de Saint Paul, um homem abordou-me, deu-me um folheto e explicou-me que o Senhor não quer que as pessoas tenham tatuagens ou piercings; explicou-me que os piercings são uma das formas que o demónio utiliza para espalhar o vírus do HIV; explicou-me, baseado em citações do Levítico, que quem tem piercings transforma-se imediatamente em homossexual e nunca entrará no reino dos céus; explicou-me também que em todas as tatuagens está sempre, mais ou menos oculto, a marca do demónio, o número 666; depois, relacionou as tatuagens e os piercings com o aborto, baseando-se sempre em citações bíblicas. O folheto tinha o seguinte título: «Faça a sua escolha: desperte para a vida eterna ou vá para o fogo eterno preparado para o diabo e para os seus anjos». Guardei o folheto, passei os dedos pelos meus piercings, acertei-os e cheguei à capela de Saint Paul.
Entre todas as pessoas fardadas, entre os representantes dos diversos credos, havia dezenas de máquinas fotográficas e máquinas de filmar. Ao lado, havia grades com um letreiro que dizia «Family check-in». De cada vez que saía de lá algum familiar das vítimas, as máquinas apontavam-se todas na sua direcção. Havia familiares que seguravam fotografias junto das grades da capela. Em cada minuto que passava, tiravam-lhes centenas de fotos. Aliás, sempre que acontecia qualquer coisa, tiravam-se centenas de fotos. Havia pessoas que passavam vestidas da cabeça aos pés com bandeiras dos Estados Unidos. Havia pessoas que passavam com cães completamente vestidos com a bandeira dos Estados Unidos. Quando, muito raramente, alguém se ajoelhava junto das grades da capela, essa pessoa era coberta por cliques de máquinas fotográficas. Havia gente com microfones à procura de gente para entrevistar e havia gente à procura de gente com microfones que os entrevistasse. Fotógrafos de diversos países pediam às mães se podiam fotografar as crianças junto das grades, dos peluches, das velas.
Aproximei-me o mais que podia do Ground Zero. Encontrei cerca de dez pessoas que carregavam um cartaz que dizia: «A pé desde Atlanta até ao Ground Zero». Passei por centenas de pessoas fardadas: polícias, militares, bombeiros. Passei por um rapaz com uma camisola de alças. No topo do braço musculado, tinha uma tatuagem com as torres gémeas. Lembrei-me da teoria sobre as tatuagens, o número 666, o demónio. Passei por um conjunto de motards. Barbas e barrigas grandes, fatos de cabedal, motas envolvidas em bandeiras dos Estados Unidos. Através de grades, entre cabeças, vi o Ground Zero. Flores à distância, velas, famílias abraçadas. No topo de um edifício uma bandeira gigantesca dos Estados Unidos.
Entre as dezenas de alternativas para passar a tarde, escolhi sentar-me num jardim a ler o New York Times. Depois, subi a Broadway e subi a quinta avenida até ao Empire State Building. Nessa longa caminhada, de novo as bandeiras. Em todas as lojas, supermercados, restaurantes, livrarias, ouviam-se músicas melancólicas de instrumentos a solo: violinos, flautas. 11 de Setembro de 2002 foi o dia em que se tocaram todas as bandas sonoras melancólicas de Hollywood. Numa posto de gasolina, havia um cartaz que dizia «Osama Bin Laden: pergunta a alguém o que aconteceu em Hiroshima e Nagasaki. Não esquecemos Pearl Arbour, não esqueceremos o 11 de Setembro. A América nunca esquece!» No topo de um edifício havia uma faixa que dizia: «Um olho por um olho, deixa toda a gente cega». Num passeio, com passos desafiantes, ia um homem com uma camisola onde estava escrito «Muçulmano por natureza».
Subi os 86 andares do Empire State Building e, no topo, estavam turistas a tirar fotografias e a ver a paisagem. Também eu tirei fotografias e vi a paisagem. Ter uma cidade como Nova Iorque aos pés, vê-la estendida na distância é apreciar a imensidão. Nada ali recordava o 11 de Setembro. Apenas os postais estavam desfasados da paisagem. Nos postais, havia duas torres enormes que não existiam na paisagem. Ao fundo, a Estátua da Liberdade e sempre a sensação de que é muito mais pequena do que aquilo que se imaginava.
À noite, havia toda a espécie de atividades relacionadas com o 11 de Setembro. Havia concertos de música clássica em vários jardins da cidade, havia leituras livres de poesia, havia mostras de imagens documentais, havia um concerto com 18 bandas punk na mítica sala CBGB, bares de cómicos a dizerem piadas sobre o Osama Bin Laden, exposições de pintura e de fotografia, bailados e muitas outras coisas. Quem me conhece bem sabe onde acabei a noite. Rodeado de gente com cabelos cor de rosa, descoloridos, verdes, prestei mais atenção aos vocalistas das bandas nos momentos em que se referiam ao 11 de Setembro. Faziam-no mais para condenarem a guerra do que para falarem do Bush ou do Bin Laden.
No dia 12, acordei em Manhattan. Atrás das janelas, os sons de Nova Iorque, os carros, as pessoas a falarem em mandarim, inglês ou espanhol. Era dia 12 de Setembro. Em Little Italy, começava a festa de San Genaro.
Texto de José Luís Peixoto
Foto de Patrícia Santos Pinto
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