Entro com a minha mãe no quintal da nossa casa
Entro com a minha mãe no quintal da nossa casa.
A terra está coberta por folhas de várias estações.
Os pessegueiros perguntam por onde andámos,
porque demorámos tanto. As plantas dos canteiros
transbordaram, embaraçaram-se numa espécie de
desespero. A água do tanque de lavar a roupa é
verde. O pombal não tem pombos. A coelheira
não tem coelhos. A capoeira está habitada pela
memória de galinhas submissas e galos no poleiro,
desconfiados de qualquer movimento. Às vezes,
como antes, sentimos a chegada da gata, é uma
presença, uma intuição, vem cumprimentar-nos,
é uma gata livre, salta pelos quintais, escolhe as
pessoas com quem quer estar, apesar de invisível,
é agora o fantasma de uma gata. Ao fim da tarde,
com as janelas abertas, o que escreve a minha mãe
sobre a mesa da cozinha? Muito provavelmente,
escreve postais aos mortos, dá-lhes notícias com
a sua caligrafia de voltas demoradas. Ela própria
receberá esses postais quando for às casas vazias
ver se há correio.
Poema de José Luís Peixoto, in Regresso a Casa, 2020, publicado por Quetzal (Portugal) e Dublinense (Brasil)
Nas livrarias a 14 de agosto de 2020
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