MAPUTO, MOÇAMBIQUE
- José Luís Peixoto
- há 43 minutos
- 3 min de leitura

O oceano Índico falava comigo, possuía uma tranquilidade desmedida para dizer-me, entornava-se para o interior do entendimento através da sua própria grandeza. Naquela hora, a partir daquela janela enorme, esse era o oceano da paz, do tempo suspenso. Eu inspirava o oceano Índico inteiro, não tinha escolha, era ele que avançava pela minha respiração. Liguei para Casa por chamada de vídeo, tocou, tocou, ninguém atendeu. Tirei uma fotografia com o telemóvel, enviei-a por mensagem para Casa.
O céu falava comigo, era um céu sem nome. Parecia-me certo que o céu não tivesse nome, tudo o que se podia comparar com ele não tinha nome. Porque andava às voltas na minha cabeça, lembrei-me da morte. Aquele céu era como a morte, abismo magnífico, visível em todos os instantes e, no entanto, o que vemos de facto quando olhamos na sua direção? Assim era aquele céu, estava lá, o olhar reconhecia-o, mas entrava por ele adentro, nunca o conseguia tocar e, mesmo assim, ficava envolto por ele. Com o mesmo infinito, o oceano. Se um era a morte, o outro tinha de ser a vida, o mesmo mistério nos dois lados.
Nas primeiras linhas de um romance que escrevi há mais de vinte e cinco anos, comparei morrer com afundar-se no céu: quando a gente morre, talvez a gente caia e se afunde no céu. Ali, de frente para aquela janela, diante de oceano e céu, vida e morte, vida ou morte, tentei fixar a linha que separava essas duas imensidões. E, talvez por ter relido os parágrafos de Filipe, desanimado no seu apartamento de Carnaxide, lembrei-me das pessoas que conheci no IPO do Porto, prometi incluí-las num livro, lembrei-me do olhar dessas pessoas no momento em que lhes fiz essa promessa. Sobre a mesa, entre o sofá e a televisão, mesa baixa com um tampo de madeira grossa, madeira moçambicana, estavam as folhas que pousara antes de ficar parado a olhar pela janela, estavam quase espalhadas, habitadas pelos nomes dessas pessoas. Os nomes eram seres completos, os nomes existiam verdadeiramente naquelas páginas, Fátima, João, os nomes acomodados entre as outras palavras, Alice, Daniel, os nomes olhavam-me a partir dos seus postos, Jorge, Filipe, os nomes estavam lá, dissolvidos na mancha gráfica.
Ao tentar fixar a linha imprecisa que separava o oceano e o céu, ao tentar definir o traço exato dessa linha, a vida de um lado, a morte do outro, comecei a lacrimejar de um olho. Apesar das lembranças, não foi pela comoção que o olho se irritou, foi pelo esforço da vista. O olho ardia como se houvesse um grão de sal que a pálpebra não conseguia expulsar, que as lágrimas não conseguiam dissolver. Esfreguei o olho com o punho fechado, mas não parou, continuou a queimar.
Eu não conseguia saber ao certo quanto tempo havia passado desde que escrevera aqueles parágrafos: Filipe, os ataques de pânico, o tumor no sigmoide, a discussão com a namorada. Como Filipe, também eu estava sozinho no apartamento. Antes de ficar parado a olhar para a janela, tinha relido essas páginas de caneta na mão e tinha-lhes acrescentado um adjetivo. Entre linhas certas, compostas por palavras com a dignidade da letra de imprensa, acrescentei um adjetivo manuscrito: órfã. Ali estava, desenhado com a minha caligrafia. Conseguia distinguir-se à distância, pequena palavra empoleirada sobre uma frase, a intrometer-se. Mais tarde, quando houvesse oportunidade de passá-la para o ficheiro do computador, seria indistinta de todas as outras. Mais tarde ainda, se chegar a existir o livro terminado, se a minha vida chegar a organizar-se, se o texto chegar a ser impresso, essa palavra estará lá, no lugar que lhe atribuí naquele dia, entre vírgulas. Só ela própria será capaz de lembrar-se de ter nascido naquele apartamento de Maputo, num nono andar da Avenida Julius Nyerere, numa sala com vista para o oceano Índico e para o céu sem nome.
O telemóvel apitou. Recebi uma mensagem de Casa, dizia: tão bonito.
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