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  • José Luís Peixoto

ARRIPIADO, CAL

A viúva junto ao rio


(O conto "A viúva junto ao rio", incluído no livro Cal, em 2007, foi escrito a partir da lenda popular à volta da origem do nome da aldeia Arripiado. Segundo essa lenda, uma princesa moura, de nome Ari, apaixonou-se por um rapaz cristão e, devido a isso, teria sido peada (presa pelo pé). Arripiado é uma aldeia do concelho da Chamusca, com cerca de 300 habitantes, ao largo do rio Tejo, na margem oposta a Tancos, concelho de Vila Nova da Barquinha.)



A viúva junto ao rio


Estou sentada na margem do rio e Deus está sentado ao meu lado. Estou sentada sobre as ervas. Estico o braço e toco as águas que se aproximam da margem para falarem comigo. Mergulho os dedos e a água é fresca. Ouço as palavras serenas que a água me diz. Deus estica o braço e toca o rio inteiro com pontos de luz.


O corpo do rio agita-se lentamente. Todo o seu corpo é de água. O rio é sempre jovem. Podem passar séculos. Pode passar toda a eternidade. O rio é sempre jovem. Há quarenta anos, o rio era exactamente igual. Eu era diferente. Deus não estava sentado ao meu lado. Há quarenta anos, era de manhã. Havia também pontos de luz na superfície do rio. O seu corpo agitava-se lentamente. Os pontos de luz apareciam e desapareciam nas ondas vagarosas das águas. Havia aqui uma árvore velha e, quando um raio de sol passava entre os ramos, mergulhava na água e atravessava-a, porque a água era límpida. Diante de mim, a água ainda é límpida. Eu e Deus olhamos a água e pensamos. Os nossos olhares mergulham e atravessam a água, como outrora os raios de sol que passavam entre os ramos da árvore velha. Deus sabe aquilo em que penso. Penso nas palavras que o rio me dizia e que, há quarenta anos, quando era de manhã, eu não conseguia entender. Os meus cabelos eram longos e negros. Os meus olhos não sabiam. Era de manhã. A minha mãe tinha-me dito: podes ir. As roupas negras da minha mãe no seu corpo, o seu rosto. Podes ir. Antes, a minha voz que era fina e frágil a perguntar. Há quarenta anos, a minha voz era a de uma rapariga. Depois, a voz da minha mãe e as suas roupas negras e o seu rosto. Podes ir. Há quarenta anos, era de ma- nhã e eu sentei-me aqui. O rio era jovem. Havia uma árvore velha. Deus não sabia de mim.


Chegou quando a sua mão me tocou no ombro. Voltei-me para ver um rosto que era o mais bonito que alguma vez havia visto. Perguntou: posso sentar-me? Há quarenta anos, quando Deus não sabia que eu era uma rapariga e que para mim todo o mundo era este rio e esta aldeia com canteiros de flores e casas brancas com barras amarelas, chegou um rapaz que me pediu para se sentar ao meu lado. Eu estava sentada sobre as ervas. Era de manhã. Havia uma árvore velha. Não falámos. Olhámos o rio, como eu e Deus o olhamos agora. Eu olhava o rio e sentia a presença do rapaz ao meu lado, o som quase silencioso da sua respiração, as palavras incompreensíveis das águas. Nesse primeiro dia, não falámos. Conhecemo-nos. Um do outro, soubemos que existíamos. O céu também existia. O rio também. O céu era infinito quando, por acaso, olhávamos para ele. O rio era talvez uma vida a passar. Nesse primeiro dia, acreditámos que o rio era talvez uma vida a passar. Estávamos sentados um ao lado do outro. O rio levou a manhã consigo. Levantei-me e saí. Ele ficou. Não falámos. Ao sair, os meus passos na terra e o peso do seu olhar sobre mim.


Em casa, a minha mãe vestida de negro pedia às criadas para trazerem chá. As criadas entravam e saíam da sala onde eu e a minha mãe nos sentávamos e passávamos as horas da tarde. Ouvia a voz da minha mãe apenas quando se dirigia às criadas. A voz da minha mãe era feita de ferro desde que o meu pai tinha morrido. Mas eu estava sentada na sala, o sol atravessava as cortinas e, sem dizer nada, pensava naquele rosto que tinha visto por momentos. Dentro de mim, no meu silêncio, aquele era um rosto de luz quando a manhã precisa de luz, e era um rosto de água quando a boca fica seca e existe água fresca a escorrer de qualquer sítio onde esteja a manhã. Por isso, ficava sentada, a fazer renda. A imagem dele ardia devagar dentro de mim, como um eclipse, como um rosto a brilhar como um sol. Às vezes, olhava apenas a agulha e os meus dedos entre a linha da renda e, às vezes, parecia-me que as formas que a linha tomava eram as formas do rosto dele. As criadas entravam e saíam da sala. A minha mãe continuava sentada. As suas roupas eram negras. A sua voz era feita de ferro.


Um dia, era o fim da tarde. Eu estava no meu quarto. Estava por trás dos vidros das janelas, as portadas estavam abertas. Olhava os homens que atravessavam o pátio com os cavalos e que depois atravessam o pátio com uma mão cheia de palha ou com um balde de água. Olhava os cavalos e os homens que tratavam deles. Estava por trás dos vidros das janelas, as cortinas deslizavam-me devagar pela face, olhava para o pátio, mas quando olhava para os vidros que estavam diante de mim, via-me refletida. Num instante em que estava a ver o meu rosto nos vidros e em que o pátio era uma indefinição baça, reparei num vulto que avançou devagar pelo meu rosto refletido. Voltei a deixar que os meus olhos atravessassem os vidros, e era ele que caminhava no pátio. Aproximou-se de um dos homens que tratava dos cavalos e falou com ele. O seu corpo e a sua cara ao longe. Não tentei perceber o que diziam. Tentei fixar cada gesto. Quando se afastaram, ele olhou para mim.


Passaram dias em que a minha mãe, sentada na sala, esperava. Eu imaginava. Fazia renda. Depois de ter passado tempo, numa manhã, pedi de novo à minha mãe. Outra vez a minha voz de rapariga. Outra vez a minha mãe a dizer: podes ir; porque a minha mãe não sabia, porque a minha mãe não imaginava. As suas roupas eram negras, a sua voz era feita de ferro. Podes ir. Levantei-me muito devagar, quando me apetecia levantar num impulso. Atravessei o corredor, atravessei o pátio com passos lentos, quando me apetecia correr. Aproximei-me do rio, da árvore velha e sentei-me. Passaram instantes em que o esperei, em que imaginei que ele pudesse não vir, em que o esperei a imaginar que ele podia não vir. O rio continuava o êxodo das coisas belas. Havia águas que eram crianças e que vinham para diante dos meus pés e que me diziam palavras frágeis que eu ainda não entendia, lamentos, lágrimas que eu ainda não entendia. Senti uma mão tocar-me no ombro. Voltei-me e vi o sol. Perguntou: posso sentar-me? Sentimos a presença um do outro. O rio sentiu a nossa presença. O meu olhar ia com o rio. Havia uma aragem que trazia a água, que trazia o fresco da água. Senti os seus dedos no meu pescoço, na minha face, nos meus cabelos. Virei-me para ele. O seu rosto aproximou-se. Os seus lábios aproximaram-se lentamente.


Em casa, na sala, sentei-me. A minha mãe olhou-me e levantou-se. Ouvi os seus passos no corredor, ouvi a sua voz e ouvi a voz de uma das criadas. A minha mãe entrou na sala. Os seus olhos eram dois incêndios. Agarrou-me o braço com força e disse nunca mais te vais encontrar com aquele rapaz. Apertou-me o braço e disse: nunca mais te vais encontrar com aquele rapaz. Passou um instante em que o significado das suas palavras continuou. A minha mãe chamou uma criada. A minha mãe disse-lhe: conta o que viste. A criada baixou o olhar e, com uma voz muito sumida, disse: vi um rapaz da vila a beijar a menina na margem do rio. A minha mãe agarrou-me de novo no braço e disse: nunca mais te vais encontrar com aquele rapaz. Pedi licença, levantei-me e fui para o meu quarto.


Olhei pela janela, os cavalos atravessavam o pátio. O meu rosto refletido na janela era triste. Fechei os olhos. Toquei os lábios como se os meus dedos fossem os seus lá- bios e os beijasse assim. Abri uma mala pequena sobre a colcha da cama. Dobrei algumas roupas e arrumei-as na mala. Não fiz nenhum barulho nos corredores. Não fiz nenhum barulho a abrir a porta. Atravessei o pátio encostada às folhas de hera que cobrem as paredes da casa. Sentei-me na margem do rio, debaixo da árvore velha. Pousei a mala ao meu lado. Deus não existia onde eu existi durante aqueles momentos. Esperava. O rio passava com a mesma velocidade que passara no dia em que nos vimos pela primeira vez, com a mesma velocidade que passa agora sob o meu olhar e sob o olhar de Deus. Esperava. Às vezes olhava à minha volta, imaginando que talvez assim o pudesse apressar. Via as casas da vila a subirem a encosta. Via os telhados. Via as flores a agitarem-se devagar, criando assim uma brisa. Esperava e dois homens, dos que costumavam atravessar o nosso pátio com mãos cheias de palha e baldes de água para os cavalos, dois homens caminhavam firmes na minha direção. Cada vez mais perto. Um agarrou-me num braço, o outro agarrou- -me no outro braço. As suas mãos eram grossas e ásperas.


As criadas na cozinha com as mãos sobre o colo a olharem para mim. Um dos homens largou a minha mala peque- na sobre o chão. Ao cair, a mala abriu-se e as roupas, que tinha dobrado e arrumado, espalharam-se no chão da cozinha. No corredor, a minha mãe estava de pé. As suas roupas negras. Os seus olhos eram dois incêndios. A sua voz era feita de ferro. Sempre a olhar para mim, falou para os homens. Disse: levem-na. O meu corpo sem força nas suas mãos. Levaram-me para um quarto onde nunca tinha entrado. Era um quarto que ficava no outro lado da casa. Era um quarto que estava sempre trancado e que, quando eu era pequena e perguntava, a minha mãe dizia: não vás para aí. Da janela, via-se o rio, via-se as margens e, ao longe, muito pequena, via-se a árvore velha. Os homens agarraram-me o tornozelo e fecharam-no numa algema de ferro, que estava presa a uma corrente, que estava presa à parede, que entrava dentro da parede. Fecharam a porta. Fiquei deitada no chão. Levantei- -me devagar. Aproximei-me da janela. Arrastava o peso das correntes que batiam no chão de madeira. Ao longe, a árvore velha, o rio. Ele estava lá. Estava sentado. O rio continuava o seu caminho eterno. Nada o podia parar.


Passaram-se muitos dias. As criadas entravam e traziam- -me comida numa bandeja que pousavam no chão. Eu comia pouco. No espelho do roupeiro, via-me magra e via os meus olhos a tornarem-se negros. Quando conseguia, passava o tempo à janela. Via-o ao longe. Via-o sentar-se de manhã debaixo da árvore velha. Passaram-se muitos dias. Mudaram as estações. A chuva caiu sobre a superfície do rio. Às vezes, a minha mãe entrava no quarto com uma ou duas criadas. Vestiam-me uma roupa lavada e passada. Tiravam-me as correntes e levavam-me para a sala. Sentada com a minha mãe, eu sabia que esperávamos. Chegava um homem que sorria. A minha mãe sorria também. Dizia o meu nome ao homem e eu não o olhava. O homem falava para mim e eu não lhe respondia, nem o ouvia, nem o olhava. A minha mãe começava a zangar-se. Deixava de sorrir. O homem também não sorria, dizia: não faz mal. A minha mãe desculpava-se por mim. Depois levavam-me de novo para o quarto e acorrentavam-me de novo à parede. Isto aconteceu muitas vezes.


Passaram-se muitos anos. Debaixo da árvore velha, ele ia envelhecendo. De manhã, sentava-se ali sozinho e ficava a olhar o rio e eu ficava a olhá-lo. Tão longe. As criadas envelheceram. A minha mãe envelheceu. Eu envelheci. Deixaram de vir homens para me ver. Deixaram de me vestir roupas lavadas e passadas, e deixaram de me levar à sala. O quarto permaneceu igual ao dia em que entrei lá pela primeira vez. A cama com os lençóis que as criadas mudavam uma vez por semana, e que me faziam perceber que as semanas passavam. Eu continuava a aproximar-me da janela e a olhá-lo, tão longe, cada vez mais velho. A forma do seu corpo a envelhecer. Os seus gestos a envelhecerem de lentidão. À noite, tudo era mais triste. O rio anoitecia. Não havia nenhuma luz nas casas da vila. Eu não tinha forças para subir para a cama. Dormia no chão. De manhã, doía-me o corpo, mas o corpo já não me interessava.


Uma manhã, ele não se sentou debaixo da árvore velha. Essa manhã demorou mais tempo do que os anos em que, ao acordar, sabia que iria vê-lo lá longe, com os contornos re- cortados pelo rio. Fiquei toda a manhã a olhar o seu espaço vazio debaixo da árvore velha. Ele não estava lá, mas estava lá a sua ausência. O rio, a árvore, as casas todas da vila sentiam a sua falta. Nas manhãs seguintes, ele não se sentou de- baixo da árvore velha. Olhei o céu, e nem o céu, nem os pássaros pareciam saber o que tinha acontecido. A minha esperança só morreu no dia em que chegaram dois homens e, com machados, cortaram a árvore. Em movimentos longos, os machados atravessaram o ar e espetaram-se na madeira velha da árvore como se se espetassem na minha carne, co- mo se cortassem a minha carne e os meus ossos. Ele nunca mais se sentou debaixo da árvore velha. Ele nunca mais se sentou na margem do rio.


A pele caía-me dos braços. Os meus cabelos eram fios de cinza. As minhas mãos perderam a forma. Passava os dias sentada no chão e encostada à parede. Não sei para onde olhava. Numa dessas tardes indistintas umas das outras, Deus entrou no quarto. Mexi a perna e mexeram-se as correntes. Deus sentou-se ao meu lado. Os seus olhos eram tristes. Deus segurou-me na mão e chorámos.


Eu era muito velha. Tinham passado quarenta anos sobre o dia em que o encontrei na margem do rio, tinham passado quarenta anos sobre a minha vida. Eu era muito velha quando duas criadas abriram a porta do quarto e se pararam a olhar para mim. Soltaram-me das correntes, deram-me um banho num alguidar, limparam-me e vestiram-me umas roupas negras. Eram umas roupas que eram iguais às da minha mãe. Eram as roupas da minha mãe. Deram-me a mão e seguia-as até ao quarto da minha mãe. Com os olhos fechados, com as mãos pousadas no peito, uma sobre a outra, a minha mãe estava morta.


Fiquei algumas horas no quarto sozinha, a olhar para o seu rosto. Depois, dentro de um caixão, levaram-na para o cemitério. Na rua, as pessoas paravam-se nos passeios. Eu ia ao lado do caixão. Além dos criados, eu era a única pessoa que ia com a minha mãe para o cemitério. Cobriram a minha mãe de terra. Atiraram pás cheias de terra sobre a minha mãe. Olhei para os criados, mas ninguém olhou para mim. Voltaram-me as costas e começaram a caminhar para a saída. Também eu voltei para a vila. Fui sentar-me na margem do rio. Sentei-me no sítio onde costumava estar a árvore velha.


Hoje, estou sentada na margem do rio e Deus está sentado ao meu lado. Há quarenta anos, era de manhã. Há quarenta anos, o rio era exatamente igual. Estou velha. Também Deus está velho. Sentamo-nos juntos e pensamos. O tempo é mais leve. Nem eu, nem Deus esperamos nada. Mergulho os dedos e a água é fresca. Ouço as palavras serenas que água me diz.


Deus estica o braço e toca o rio inteiro com pontos de luz. Os meus cabelos já não são longos e negros. A minha pele soltou-se da minha carne. E se eu dissesse agora uma palavra, sei que a minha voz seria feita de ferro.



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