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COSTA VICENTINA, PORTUGAL

  • José Luís Peixoto
  • há 42 minutos
  • 4 min de leitura

Submerso no mundo


(Este conto ficcional foi escrito a partir da apanha de algas no Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina, realizada por mergulhadores, uma prática tradicional, que alia práticas ancestrais e preocupações contemporâneas de sustentabilidade ambiental.)




A manhã começa cedo. Ele acorda, deixa o mundo e entra no mundo. Deixa o mundo de dormir, o sono, e entra no mundo. Acordar é uma fronteira entre mundos. A casa está quieta, ele abre a porta. Há um mundo depois da porta, como há um mundo parado no interior de casa. A porta da rua é uma fronteira entre mundos.


Encontra os outros homens, dizem bom dia, deixam o silêncio entre as palavras. Passam horas calados, horas em que falam dentro de si. Repetem histórias dentro de si. Agora, vestem os fatos de mergulho e, por baixo, tudo o que podem acrescentar: ligaduras, collants, óleo na pele. Vestem a pele. Debaixo de água, têm outra pele.


O casco do barco está dentro da água. Avança dentro e sobre a água. Ele sente o motor a trabalhar, vê como corta esta matéria que brilha. Enquanto o barco avança, estica o braço, mergulha a mão, toca o fresco com os dedos, e a mão muda de forma debaixo de água. Avançam pelo mar. São homens que se afastam de tudo. Deixam para trás tantas coisas. Não é certo que as esqueçam. Por momentos, têm a ilusão de poder esquecê-las. A terra fica parada. Afastam-se, e a terra fica parada atrás deles. A superfície do mar mete medo. Podiam continuar e podiam desaparecer dentro do mar. Quando ele olha para o horizonte, sabe que o mar é infinito, bastava querer e desapareceriam para sempre. Se um dia quiserem, podem desaparecer para sempre.


O barco para. Existem os movimentos de todos os dias quando o barco para. Ele olha para o céu. Sobre eles, há uma superfície que reflecte o mar. Os homens lançam-se. O som dos corpos a cairem dentro de água. Ninguém se despede antes de desaparecer no mar. Com passos de barbatanas, ele aproxima-se da borda do barco. Demora muito tempo a cair dentro de água. De costas, vê o céu. Pensa em muitas coisas antes de cair. Repara que começou a manhã. Cai dentro de água e ouve uma explosão. Deixa o mundo e entra no mundo. Atravessa uma fronteira entre mundos.


Os seus braços e as suas pernas movem-se pela água. O seu corpo agarra-se à água. Consegue voar debaixo de água. Se a água fosse o ar, agarrava-se ao ar e subia por ele. Há peixes que vêm ao seu encontro. Os movimentos dos seus braços, pernas, barbatanas, levam-no para o fundo.

Ele distingue as algas à distância. Primeiro, são uma mancha vermelha, como sangue. Depois, os seus contornos definem-se, brilho viscoso, linhas que as desenham. Cada alga é diferente de todas as que já viu e de todas que existirão no futuro. No entanto, todas são iguais. Sente na mão o peso frágil de algas. Na sua mão, são pequenas flores.


Lentamente, o frio atravessa-lhe a pele: o fato de mergulho, os collants, as ligaduras, o óleo. Lentamente, o frio atravessa-lhe a pele que tem fora de água, que tem ao domingo, quando veste a camisa que guarda para os domingos. Lentamente, o frio atravessa-lhee a pele e entra na carne. O seu coração bate gelado. Os seus pulmões, gelados, respiram o ar que chega pelo tubo. Os seus olhos, atrás dos óculos, estão gelados. As horas passam lentamente. Através das horas, o frio cresce para dentro dele. Quando levanta a cabeça, vê o céu do mar, parede de luz que se agita, toalha de luz estendida ao vento. Imagina que, lá fora, haverá uma brisa a desenhar rugas na água. Lá fora, o sol. Dirige-se à superfície, nada como se voasse, sobe por dentro da água.


O seu rosto atravessa a luz, a linha que separa a água do ar. Tira o tubo da boca e enche a boca de ar. Respira o mundo inteiro. Respira o céu e a luz. Quando fala para os homens do barco não acredita na existência da voz que sai de dentro dele. Por instantes, volta a ser uma pessoa com voz. O sol toca devagar no seu rosto. Ao tirar os óculos, sente a água a escorrer-lhe na pele seca. Com o tubo, com os óculos, volta a mergulhar. Os sons líquidos do mundo. De novo, há peixes que vêm ter com ele. As algas, manchas de sangue, corpos delicados que segura. O tempo passa, as horas.


Submerso nas horas, sente o seu corpo a desfazer-se na água. Sente os pontos onde os ossos se dobram, as articulações onde os ossos se querem separar, gastas pela água e pelo tempo. Sente a pele antes de se rasgar. O frio atravessa-o, faz parte da água gelada.


Por fim, quando sobe para o barco, volta a sentir o corpo, ossos, pele. Olha para o mar porque sabe o que existe no seu interior. Estende o corpo, o fato de mergulho seca devagar, a sua pele endurece devagar. Sente o motor a trabalhar, olha para terra, aproxima-se de onde o esperam. Regressa ao mundo. Vem do mundo. Vê ao longe uma fronteira entre mundos.


Em cada passo, dá valor à terra debaixo dos pés. Carrega o peso de redes cheias de algas. Cada alga é diferente de todas as que estavam nas redes que carregaram ontem, ou que carregaram em toda a sua vida.


Caminha pelas ruas de pedra. Passa por gente que lhe diz boa tarde, também eles conhecem a pele quase a rasgar-se, os ossos quase a separarem-se do corpo, o peso das redes cheias de algas. Responde boa tarde, o seu olhar não se habituou ainda à sua voz. Escuta os sons deste novo mundo. Pássaros. Carros. Vozes. Caminha pelas ruas e sabe o que deixa para trás. Amanhã, entregará de novo o seu tempo e o seu corpo. Amanhã, entrará novamente nesse mundo. Sabe porque o faz. Caminha pelas ruas e sabe para onde vai. Começo a ver, ao longe, a porta de casa. Caminha mais depressa, sabe para onde vai, quer chegar. Abre a porta com a sua mão feita de algas. O dia repousa debaixo das paredes de cal. Ao atravessar a porta, há uma sombra que vem descansar no seu olhar. Deixa o mundo e entra no mundo. A porta de casa é uma fronteira entre mundos.




Clicar abaixo para assistir a transmissão em direto, feita em dezembro de 2021:





© José Luís Peixoto

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