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  • José Luís Peixoto

AMMAIA, ALTO ALENTEJO, PORTUGAL

O sol de Ammaia


O professor Carlos Fabião parece não reparar no sol. Passam poucos minutos do meio-dia, está a pique o sol alentejano de julho, assenta sobre a pele como uma brasa. Debaixo dos nossos passos, as ervas foram secas por este sol. Mas o professor parece caminhar no interior daquilo que descreve, há um mundo nas suas palavras. Talvez habituado à canícula das escavações arqueológicas, o professor é tocado pelo mesmo sol que tocava as pessoas que aqui estavam há dois milénios.


Acredita-se que Ammaia foi fundada no tempo do imperador Augusto, no século I a. C. Hoje, localizada no concelho de Marvão, no Alto Alentejo, Ammaia desenvolveu-se durante cerca de quatro séculos, beneficiando de uma localização que lhe permitia a disponibilidade de recursos naturais e uma boa relação com Emerita Augusta, a atual Mérida, o principal centro urbano da região durante a presença romana.


A Porta Sul de Ammaia era a principal via de acesso e estava justamente apontada a Emerita Augusta. A muralha que rodeava a cidade, construída de granito e de xisto, tinha mais de sete metros de altura. A sua primeira função não era defensiva, uma vez que não havia ameaças eminentes, mas permitia demarcar a cidade e, assim, garantir o seu funcionamento a vários níveis, nomeadamente fiscal. Enquanto dá estas informações, o professor parece estar a ver aquilo que diz. É essa a proposta: imaginar.


Recordo As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino. Marco Polo descreve a Kublai Kahn algumas das impressionantes cidades que encontrou no seu caminho até ao oriente. Aqui, o professor é Marco Polo. Em resposta ao que escutamos, colocamos-lhe dúvidas e perplexidades, especulamos às vezes. Ao responder-nos, ao acrescentar as suas próprias dúvidas e perplexidades, ao propor cuidadosas especulações, desenvolve esse novelo a partir do qual imaginamos Ammaia. Somos quatro homens a caminhar num espaço que, há séculos, era ocupado por uma cidade.


Quem entrava pela Porta Sul atravessava um pátio interior, com duas torres circulares e, logo depois, chegava a uma praça pavimentada com granito e circunscrita por um pórtico com colunas. O professor explica-nos isto apontando para esses exatos blocos de granito, os mesmos que, há dois mil anos, alguém carregou para aqui, que resistiram durante todo esse tempo até esta hora tórrida de julho. De um dos lados, os blocos estão espalhados no terreno, abateram sobre o espaço vazio que tinham por baixo, onde existia um sistema de armazenamento e distribuição de água.


Para além de imaginar, a proposta é também interpretar os vestígios. Pedras que se encontraram caídas a partir de uma construção permitem calcular a altura dessa construção, por exemplo. Antes de fechar certezas, a arqueologia propõe hipóteses. O passado começa por ser um enigma mas, depois de encontrarmos indícios, o passado passa a ser uma hipótese.


Avançamos pelo cardo maximus, a rua principal, o eixo da cidade de Ammaia. Tentamos imaginar essa via, com comércio dos dois lados, com artesãos e, aqui, à distância de um braço esticado, está uma figueira coberta de folhas grossas, figos a amadurecer. Assim chegamos ao fórum, ao centro da cidade. Era neste ponto que ficava o templo mais importante de Ammaia. Imaginamo-lo em toda a sua grandiosidade enquanto observamos o que restou das suas fundações, enquanto ouvimos as explicações do professor, análises que juntam detalhes do que está de facto à nossa frente com o que sabe acerca de quando aqui estava um templo de facto.


O sol é agora ainda mais intenso. Também ele aqui estava quando os dois mil habitantes de Ammaia cruzavam as suas ruas, quando aqui nasciam e viviam. Olho os montes em volta, Marvão lá em cima. Essa era uma imagem desconhecida nos melhores anos da cidade romana. Ibn Maruán, o fundador de Marvão, chegou a estas terras no século IX, quando Ammaia já estava em ruínas. Esse é o tempo em que ainda estamos. No entanto, enquanto formos capazes de imaginar, há algo enorme que permanece.

Muito obrigado, professor.



O museu


Entramos no espaço de Ammaia pelo edifício do museu, à sombra. Aí, esperam-nos várias salas com peças encontradas nas escavações que têm sido realizadas a partir da década de noventa e, também, com algumas peças recuperadas a partir de vendas levadas a cabo por locais, antes dessa intervenção e dessa regulação. Entre as peças expostas, há múltiplos objetos de uso quotidiano. Pessoalmente, impressiona-me o vidro que, com a sua fragilidade, atravessou estes séculos. O museu é especialmente rico em jarros, garrafas, pratos, taças e outros objetos desse material. E sempre as perguntas: quem os terá utilizado? Em que circunstâncias? Respondemos com tudo o que somos capazes de imaginar. Para além disso, o vidro, limpo, todos os séculos que contém.


Mas também existe a pedra, claro. A sua vontade rígida, a manter as formas e as inscrições que alguém lhe fez. Mas também existe o bronze, com o seu peso e resistência. Com muitos os cuidados, mostram-me uma pequena figura, encontrada em 2016. Tem quase sete centímetros, trata-se da representação de Hércules ainda jovem, envolto numa pele de animal, provavelmente na pele do leão Nemeia, com quem lutou e a quem venceu. Para além disso, este é um Hércules que venceu o tempo, uma prova digna da sua força, simultaneamente humana e divina.




Texto e fotos de José Luís Peixoto

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