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  • José Luís Peixoto

MAJDANEK, LUBLIN, POLÓNIA

Seres humanos


Gotas finas de chuva caíam sobre as fotografias que o guia nos mostrava. Eram fotografias plastificadas, mostrou-as muitas vezes a muita gente que aqui veio antes de nós, eram rostos suspensos num momento de ânimo, ignorantes de tudo o que havia de acontecer, rostos de vítimas e de criminosos, com olhos vivos, apesar do preto e branco, pessoas uns e outros. O tempo continuava a soterrá-los, segundo a segundo, como as gotas finas e irregulares de chuva que, hoje, os cobriam.


A crueldade desumaniza. Durante todos os dias dos três anos de atividade do campo de concentração de Majdanek, era isso que os nazis tentavam fazer aos prisioneiros: desumanizá-los. Quando lhes rapavam todo o cabelo, quando lhes trocavam o nome por um número, tentavam desumanizá-los. No entanto, a crueldade tem duas direções e desumaniza ainda mais os que a exercem do que os que sofrem debaixo do seu martírio. É por isso que, hoje, nos custa encontrar humanidade naqueles que aqui torturavam e assassinavam, à saída da cidade de Lublin, entre muros de arame farpado. Não queremos acreditar que foram humanos a fazer tudo isto, que o ser humano pode alcançar este grau de crueldade.



Encher os fornos de corpos, empurrar corpos para dentro dos fornos. Havia homens cuja função diária era empurrar corpos para dentro dos fornos do crematório. A chaminé é a única saída de Majdanek, diziam os nazis aos prisioneiros.


Depois de passarmos pelos vários pontos do campo de concentração, onde ouvimos histórias com detalhes, onde analisámos objetos de pessoas que aqui desapareceram, sapatos, fotografias escondidas de familiares que já ninguém reconhece, depois de visitarmos o crematório, estamos a olhá-lo a partir de fora.


Surpreendidos pela rapidez com que o exército soviético chegou a Majdanek em 1944, o crematório foi o único edifício que os alemães conseguiram destruir antes da fuga. Essa circunstância fez com que Majdanek fosse o campo de concentração mais preservado no pós-guerra. Ainda assim, o crematório que hoje vemos é uma reconstrução, feito a partir de documentos, fotografias e lembranças, com a intenção de que não se esqueça o que aconteceu aqui.



Olhamo-lo a partir do memorial, também construído com esse propósito, e que inclui cinzas que se tentaram recuperar de vários lugares, até dos fertilizantes que eram feitos com essas cinzas humanas. Cerca de 78 mil mortos, dos quais 54 mil eram judeus.


O guia dá algum tempo para pensarmos nessas pessoas, para rezarmos. O silêncio que cobre a manhã é comparável ao céu, cinzento, toneladas de céu. Grasnam pontos pretos, corvos lamentam-se. A cidade existe ao longe. E a chuva, sempre, sem parar.





Texto e fotos de José Luís Peixoto





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