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  • José Luís Peixoto

Coreia do Norte, Dentro do Segredo


Coreia do Norte






Nos corredores do metro, havia muitas crianças sozinhas. Com uniforme de saia ou calças azuis escuras, casaco azul escuro e lenço vermelho de pioneiro, iam tranquilas, dirigiam-se para algum lado.


Nenhum dos livros que li mencionava este detalhe. Entre o grupo de estrangeiros com quem viajei não ouvi ninguém referir-se a isto. Na Coreia do Norte, a maioria dos estrangeiros está alerta para as diferenças, mas não para todas. Aquilo que se quer ver é uma parte grande daquilo que se vê.


A baixa estatura dos coreanos pode enganar quando se tenta calcular idades. Ainda assim, entre as crianças que vi sozinhas no metro, creio que as mais novas deveriam ter à volta de cinco ou seis anos. Os seus rostos não apresentavam uma mínima sombra de medo.


Recordo o quanto isso seria impensável para uma criança normal, com pais, na capital de qualquer um dos países daquelas pessoas que ali estavam de visita.


Num mundo imperfeito, não há ninguém que esteja sempre certo.


Da mesma maneira, ninguém está sempre errado. Na Coreia do Norte, com muita frequência, vi crianças a serem acarinhadas pelos mais velhos. Tanto podia alguém com idade de ser avô ou pai estar abraçado a uma criança, compenetrado nesse gesto ou a prestar atenção a outra coisa, a falar com alguém talvez, mas sem parar de fazer festas; como podia uma criança estar a abraçar alguém mais velho, a fazer-lhe festas com naturalidade. Muitas vezes, assisti a trocas de afecto entre adolescentes, adultos, ou crianças abraçadas, de mãos dadas. Esses sinais de carinho eram independentes do sexo, rapazes abraçados a rapazes, de mão dada, raparigas abraçadas a raparigas, rapazes abraçados a raparigas, nenhum problema. Ainda assim, o cuidado dispensado às crianças foi aquele que mais me sensibilizou. Essa ternura, repetida ao longo dos dias, amenizava bastante outros aspectos da paisagem. Não é quantificável, como o Produto Interno Bruto, o número de médicos por mil habitantes, mas acredito que é igualmente uma marca de desenvolvimento civilizacional.


Crianças a caminharem sozinhas pelas ruas, a apanharem o metro sozinhas, talvez porque existiam militares em cada esquina, talvez porque viviam num Estado policial ou talvez por outro motivo qualquer, que também poderemos considerar se nos permitirmos a ver as questões por mais do que apenas uma perspectiva.


Entrei no metro pela estação de Puhung. O tamanho das escadas rolantes impressionava. A cento e vinte metros abaixo do solo, o metropolitano de Pyongyang é o mais profundo do mundo. Naquela manhã, havia muita gente a utilizá-lo. As escadas rolantes estavam cheias. A estação de Puhung também. Havia muito espaço, tudo era enorme: lustres sumptuosos, tectos trabalhados, as paredes fixas com grandes extensões de mármore esculpido e murais repletos de detalhe que, nessa estação, mostravam a prosperidade industrial de um lado e a prosperidade agrícola do outro. Ao fundo, um mural também grande, 15,6 por 9,25 metros, do grande líder a sorrir entre trabalhadores.


Os comboios passavam de um e de outro lado, encostados aos murais. Ao centro, quem esperava ia-se ocupando a pontapear discretamente o vazio ou a ler jornais de parede, afixados em mostradores presos a pequenos postes. Em todas as imagens desses jornais estava pelo menos um dos líderes.


Na estação, havia uma rapariga, fardada e bonita, que esperava pelos comboios e que prestava atenção às portas. Quando chegava um comboio, chapas de ferro pesado, tinta grossa verde e vermelha, trazia duas ou três raparigas, também fardadas e também bonitas, que se inclinavam pelas portas, certificando-se de algo que, ali, quase de certeza, não precisava de ser certificado. As pessoas saíam ordenadas e entravam ordenadas.


No interior dos vagões, havia claridade antiga. Uma voz de telefonia estendia uma narração ininterrupta através de colunas roufenhas. Sentados, sem curiosidade, os passageiros seguiam em silêncio, não porque estivessem a prestar atenção àquele ruído, mas por perfeita civilidade. As paredes estavam forradas a fórmica, sem um risco, sem uma mancha. E, ao fundo de cada vagão, no topo, sempre presentes, as fotografias de Kim Il-sung e de Kim Jong-il.


Fiz um caminho de seis estações, saindo em algumas delas e olhando para as imensas colunas de mármore, para os murais e para as pernas das mulheres.


As colunas de mármore podiam ser esculpidas com um ou outro motivo, podiam ser mais grossas ou com intenções mais minuciosas. Num ou noutro caso, parecia sempre que estavam a sustentar um palácio enorme. Os murais podiam representar cenas da natureza, como na estação de Yonggwang, mas mais habitualmente consistiam em quadros, onde ficavam expressas as acções heróicas dos trabalhadores e dos líderes norte-coreanos. Com mais de trinta metros de comprimento, essas imagens seriam de grande realismo num mundo correcto, proporcional, de justiça absoluta, onde nada saísse dos seus contornos, onde ninguém tivesse qualquer dúvida.

As pernas das mulheres indiciavam outro tipo de mundo. Às vezes, em movimentos bruscos, era possível olhar para debaixo dos vestidos tradicionais. Então, podia ver-se as calças que as mulheres traziam por baixo. No caso de escolherem outros vestidos ou saias mais curtas, mas que tapavam sempre os joelhos, as mulheres usavam collants, opacos ou quase, e, por cima, meias de algodão ou lã a cobrir os pés e os tornozelos. Também eram comuns as calças largas, de fazenda. As camisas estavam sempre abotoadas até ao último botão, apertadas de encontro ao pescoço e nos pulsos. Como em toda a Ásia, também na Coreia do Norte, as mulheres evitam ao máximo apanhar sol. Era comum usarem uma maquilhagem de pó branco sobre o rosto, enfarinhadas.


Saí na estação que ficava ao lado do Arco do Triunfo. "Como o de Paris, mas maior", repetiu a menina Kim. Da revitalização ao triunfo. Os nomes das estações por onde passei, traduzidos, significam: Revitalização, Glória, Lanterna, Vitória, Reunificação, Triunfo.


O Museu do Metro de Pyongyang interessou-me pouco. Demasiados objectos tocados pelo grande líder: cadeiras onde se sentou quando foi ver as obras, a lanterna usada pelo guia que o acompanhou, o copo de alumínio por onde bebeu, etc. Também um mapa com estrelas amarelas junto das estações a assinalar as visitas de Kim Il-sung e estrelas verdes a assinalar as visitas de Kim Jong-il. Era muito mais um museu sobre as visitas dos líderes ao metro do que sobre o metro.







Texto de José Luís Peixoto, in Dentro do Segredo, Uma viagem na Coreia do Norte, publicado por Quetzal (Portugal), Companhia das Letras (Brasil), Xordica (Espanha), Atlas Contact (Holanda), Svetulka 44 (Bulgária), Odeon (Albânia), Ars Lamina (Macedónia) e Bozicevic (Croácia)

Fotos de José Luís Peixoto

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