Barcelona, primavera de 2021
Ao sair de casa, não parava de verificar mentalmente se me tinha esquecido de alguma coisa. Em maio, a caminho da primeira viagem de avião do ano, sentia-me inseguro em relação à imensa lista de carregadores de aparelhos ou documentos que, de certeza, me fariam falta. Acrescente-se que, neste tempo, a burocracia aumentou: comprovativo do teste ao vírus com resultado negativo, comprovativo do preenchimento na internet de um questionário de localização em todos os momentos, etc.
O aeroporto quase vazio foi uma sensação paradoxal: alívio e melancolia. Depois, o avião a levantar voo, Lisboa vista do céu, duas horas de silêncio, e o avião a preparar-se para aterrar, Barcelona vista do céu. As malas chegaram ao tapete rolante com uma rapidez pouco habitual. O taxista usava a máscara como uma faixa à frente da boca e do nariz, não podia prendê-la ao queixo, a longa barba não permitia.
No banco de trás, olhando pela janela, não encontrei demasiadas mudanças na vida dos passeios de Barcelona. Era o fim da tarde de sábado, gente levava a alegria súbita da rua e, em simultâneo, a desilusão com que se caminha neste tempo. Foi apenas quando cheguei à receção do hotel que, através de uma parede de acrílico, me explicaram que, se quisesse jantar, tinha trinta minutos para encontrar um restaurante e comprar algo em take away. À hora certa, fechava tudo, não se podia continuar na rua.
Sentado na poltrona do meu quarto, jantei arroz japonês a partir de uma embalagem de cartão. Antes, quando já tinha comprado essa comida, com um saco de plástico na mão, cruzei-me com a ruidosa festa de adeptos do Español, tinham subido de divisão. Ao equilibrar torrões de arroz na ponta dos pauzinhos, recordava esse alarido que cumpria distanciamento social, tochas luminosas a pintarem de azul o último resto de dia, bandeiras volteadas no ar como enormes lençóis. As vozes dessa multidão foram esmorecendo no meu pensamento da mesma maneira que, acredito, se calaram na praça durante o recolher obrigatório. A praça, suponho, terá ficado vazia, esse era o silêncio que preenchia o quarto enquanto mastigava. A minha memória, no entanto, foi-se povoando com lembranças da minha casa em Portugal. Naquele momento, o que estaria a acontecer na minha sala?
Sentia falta das presenças que sempre tenho em casa, não apenas as pessoas, não apenas a cadela, mas também os objetos, a segurança da familiaridade. Tentei alimentar essas faltas com a leitura de um livro que já levava lido até metade. A continuidade do texto acalmou essa inquietação, mas, a partir da meia-noite, começou um imenso barulho nas ruas, rapazes e raparigas a subirem e a descerem as ruas, eufóricos, petardos e foguetes fortuitos. Seriam adeptos do Español?
Foi só no dia seguinte, depois de um pequeno-almoço coberto com película celofane, que percebi na primeira página do jornal La Vanguardia o que tinha acontecido: SE ACABÓ EL TOQUE DE QUEDA. Ou seja, à meia-noite, tinham terminado os confinamentos das comunidades autónomas, tinha terminado o estado de alarma. Os jovens vieram para as ruas celebrar a nova liberdade.
Na tarde desse domingo, a famosa La Rambla estava ocupada por uma multidão, marés ainda assustadas, queriam ver o mundo. Casais com carrinhos de bebé, avós já vacinados, gente com esperança. Ao longo dessa caminhada, por impulso, entrei numa exposição no palácio Virreina. As salas estavam vazias, ninguém tinha vontade de estar fechado naquele momento. Essa solidão permitiu-me ver com olhos reflexivos aquela exposição de imagens e objetos de Joseph Beuys, um dos grandes questionadores da arte. Seguindo os seus raciocínios, pareceu-me que tudo o que estamos a viver é uma enorme obra de arte, uma performance, uma instalação.
Saí da avenida e entrei no bairro El Raval e, como um caleidoscópio, as ruas apresentavam uma nesga de céu lá em cima, as varandas cheias de roupas a secar, tantas cores como pessoas de múltiplas culturas e origens, mulheres de véu, homens chineses talvez, colombianos embrulhados na bandeira do seu país, cada um deles a participar num protesto que acontece a mais de oito mil quilómetros de Bogotá, crianças de todo o mundo, de Barcelona, trotinetes a passarem entre a multidão. E a primavera, essa luz limpa a inundar tudo, a transbordar.
Palau Güell
Este palácio foi uma das primeiras encomendas que Gaudi recebeu. Terminou de construir-se em 1890. Cerca de cem anos depois, foi declarado património mundial da UNESCO.
Subindo pelos seus vários pisos, observando a extravagância da sua estética, surpreendeu-me a constatação de que, em tempos, viveram aqui pessoas. Da mesma maneira que tenho a minha casa, houve alguém que teve esta casa.
Num primeiro momento, pareceu-me que teria de ser muito diferente viver aqui ou numa casa como a minha, que não foi projetada por Gaudi. Mas, logo a seguir, apercebo-me que a principal característica das casas é a familiaridade e, com ela, a segurança.
Incrivelmente, este palácio Güell foi abrigo de pessoas que, como nós, passaram por uma pandemia; nesse caso, a gripe de 1918. Aperceber-me disso deu-me a saber muito sobre este lugar. A vida, como a arquitetura de Gaudi, é composta por um entrançado de detalhes.
Texto de José Luís Peixoto
Fotos de Dimitry Anikin, Yoav Aziz e Manuel Torres Garcia
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