Pensamentos transformados em pedra
De certo modo, a pedra é uma condensação do tempo. Processos como a cristalização e a erosão são sinónimos possíveis do tempo. Numa das lições mais elementares da físico-química, Lavoisier fala-nos da maneira como o tempo transforma. Nada se perde, dizia ele, referindo-se ao todo. Faz sentido que, em absoluto, nada se perca; no entanto, considerando cada corpo, a passagem do tempo é muitas vezes uma perda e, também, por consequência uma acumulação.
Gravamos palavras na pedra para nunca mais se apagarem, esculpimos rostos na pedra porque não queremos que sejam esquecidos, construímos túmulos de pedra para nos acolherem por toda a eternidade. Usamos a pedra como resposta à morte, uma das armas com que tentamos enfrentá-la.
Tenho estes pensamentos diante do dólmen do prado de Lácara, na Extremadura, a pouca distância de Mérida, justamente uma edificação fúnebre, um sepulcro. Foi construída por pessoas e albergou os corpos de pessoas. Calcula-se que seja uma obra do final do Neolítico, na fronteira entre o quarto e o terceiro milénio A.C. Ou seja, há cerca de cinco mil anos, mais ou menos século.
Números como estes atordoam se olhamos fixamente para eles. Dão-nos uma noção, ainda que muito imperfeita, do tamanho do tempo, dão-nos proporção. Imaginar tempo medido em milhares de anos é a experiência de transcedência que lugares como este nos permitem, uma espécie de vertigem.
Existimos no tempo com a mesma fragilidade de um corpo celeste no universo: em simultâneo, somos pequenos e grandes. Somos pequenos em comparação com a imensidão de planetas, cometas e estrelas; mas somos grandes quando olhamos para o fundo de nós próprios, para toda a vida que contemos. Se não olharmos nessa direção, perdemos a consciência de uma proporção igualmente importante, também espaço e tempo.
O dólmen do prado de Lácara parece manter um vínculo direto com o universo, com o mistério desse infinito que começamos a imaginar, tão grande, até sermos forçados a desistir; mas, a pouca distância, está a estrada EX-214, que liga Aljucén a La Nava de Santiago. No alcatrão, a x quilómetros por hora, passam automóveis, são conduzidos por pessoas com pensamentos, gente que sabe para onde se dirige. Tanto essas pessoas como esses pensamentos existem agora, neste preciso momento.
Também eu estou aqui. E também essa é uma constatação profunda, também ela se inscreve no tempo. Penso nas pessoas que, há cerca de cinco mil anos, com grande esforço, juntaram estas pedras, deram forma a este dólmen impressionante. Penso também nas pessoas que aqui foram sepultadas. Não têm rosto ou nome, mas sabemos que existiram. E agora, neste preciso momento, existe a probabilidade de se terem transformado em pedra. À superfície, ou enterradas junto às raízes de qualquer uma destas árvores, talvez até já longe daqui, a fazer parte de um edifício, de uma estrada ou soltas no mundo, existe a probabilidade de se terem transformado em pedra: erosão ou cristalização do seu corpo e da sua memória.
Texto de José Luís Peixoto
Fotos de Patrícia Santos Pinto
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