top of page
  • José Luís Peixoto

VILA REAL, PORTUGAL

Atualizado: 30 de out. de 2020


A exatidão de estarmos aqui







Com o mapa aberto sobre o colo, apenas o norte, Portugal dobrado em Aveiro, levanto o rosto nos períodos em que seguimos em frente, quando não é preciso virar. O para-brisas cinge uma parte do meu campo de visão mas, mais perto, à esquerda, tenho o meu pai a conduzir pensativo, talvez conduza pensamentos; à direita, tenho a janela meio aberta, não posso abri-la toda devido ao mapa. Não quero Portugal incontrolável, o território nacional a voar na cabina da carrinha. Também perto, abaixo do para-brisas, está o painel do carro: o porta-luvas, o isqueiro avariado, o rádio.


Estendo a mão para ligar o rádio e procurar estações. Entre o indicador e o polegar, rodo o pequeno botão por décimas de megahertz, como é longa a FM. Devagar, faço o ponteiro vermelho avançar por um terreno de risquinhos, de ruído estático. De repente, brota uma voz do interior desse ruído, atravessa-o ou é atravessada por ele, começa quase a definir-se, mas acaba por perder-se logo a seguir no seu interior. Talvez não tenha passado de um espectro, ilusão ou memória.


Tanto o meu pai, como a minha mãe ou a minha irmã no banco de trás, não se queixam destes desacertos. Sabem que falta delicadeza ou casualidade para determinadas sintonias. Quando consigo, irrompe uma voz de Vila Real, como se estivesse aqui connosco, fala diretamente para nós. O meu pai abranda a condução, não quer perturbar a harmonia do som, não quer entornar nem uma gota deste equilíbrio.


Falta pouco para entrarmos na cidade. Rodeados por Trás-os-Montes, sabemos já que havemos de tirar uma fotografia juntos no Largo do Pelourinho. Foi a minha irmã que nos avisou. Leu no seu livro sobre o largo e o monumento. Logo a seguir, contou-nos tudo: 1515, foral de D. Manuel, etc. Então, ficámos a saber que talvez o meu pai assente o pé num dos degraus da base, aprecia essa pose de descobridor, terno vaidoso. Então, enquanto estivermos à espera que alguém nos fotografe, esperançados que não nos corte as pernas, haveremos de tentar o sorriso certo: nem a mais, nem a menos, delicada medida, leve como um sopro. E todos nos regularemos por padrões diferentes, todos teremos sensibilidades próprias para definir essa avaliação. Precisaremos de esperar pela revelação. Para além da precisão do sorriso, é provável que alguém tenha fechado os olhos sem querer.


Passamos a placa, essa é uma fronteira marcada. No instante em que entramos em Vila Real, escutamos esta voz que apenas podemos sintonizar aqui, o transmissor não chega mais longe, que apenas existe agora, nesta hora, neste dia, verão, 1990. A fotografia no Largo do Pelourinho, permanecerá. O sorriso que tivermos durante aquele estalido metálico, continuará quando olharmos para aquele papel talvez desbotado e, ainda assim, muito mais nítido do que a nossa memória. O meu pai, a minha mãe, a minha irmã, eu e Vila Real. Ainda bem que estamos aqui, sintonizados com exato rigor, sem um grão de interferência, absolutamente vivos e simultâneos.





.


Texto de José Luís Peixoto

Fotos de Varun Kapur e Cristiano Pinto

bottom of page