A tartaruga gigante e eu
Tem a cabeça preta, da cor da terra. Leva a idade na pele grossa, vincada por marcas de anos, dias, estações e intempérie. Os seus olhos, pretos, não parecem ver-me. Está no interior de outro tempo. Olho-a sem saber onde está, desconheço esse presente. Estamos no mesmo lugar, mas não estamos no mesmo tempo.
Estendo-lhe uma folha comprida. A cabeça da tartaruga alonga-se a partir da carapaça. Sinto a força bruta com que morde a folha, rasga fibras de uma natureza rija. O barulho da folha a rasgar-se é diferente de todos os sons que nos rodeiam: liberdade de pássaros que aparecem e desaparecem, brisas demoradas que agitam ramos de palmeiras.
Nascemos para toda esta natureza. Nisso, a tartaruga e eu não somos diferentes. Avançamos neste labirinto. Há vezes em que acreditamos que somos capazes de chegar ao seu fim, convencemo-nos dessa ideia. Há vezes em que acreditamos que este é um labirinto infinito, convencemo-nos também dessa ideia. Num e noutro caso, dependemos daquilo que somos capazes de imaginar, da claridade que somos capazes de lançar sobre o tempo que nos espera. Estamos aqui, chegamos de lá longe, para onde nos dirigimos? A resposta que hoje conseguimos dar a esta pergunta determina-nos.
A tartaruga começa a afastar-se. Desinteressou-se. Eu, no entanto, ainda tenho perguntas para fazer-lhe. É uma tartaruga gigante. Não sou capaz de saber se passou toda a sua vida aqui no jardim botânico de Victória ou, com alguma probabilidade, se veio carregada por mãos sem nome. A sua carapaça parece feita de pedra, basalto, esse é também o seu peso aparente.
Bastam-me dois passos para alcançar a tartaruga. Continua a dirigir-se para algum lugar, ignora-me, mas tenho a vantagem da velocidade. Acompanho-a durante alguns metros, observo-a, mas depois deixo-a continuar sem mim, fico a vê-la a afastar-se lentamente.
As tartarugas gigantes das Seychelles, como esta, têm vidas que chegam aos duzentos anos. Eu, como os da minha espécie, não contamos com tanto, não imaginamos horizontes desse tamanho. Ainda assim aqui, ao ver esta tartaruga a afastar-se, todos os movimentos divididos, penso que talvez a sua lentidão seja a velocidade adequada para uma vida longa. Talvez esta tartaruga gigante viva tanto como eu, mas mais lentamente. Se assim for, é possível que a rapidez determine o tempo de que se dispõe. Nesse caso, a pressa faz parte da natureza, como todo este verde que nos rodeia, como esta tartaruga velha ou como eu, que não sei a idade exata que tenho, que não sei em que ponto da minha vida estou, quanto me falta.
Suspeito que a verdadeira medida do tempo não seja as estrelas e os planetas, os dias e os meses. A verdadeira conta faz-se a partir do tempo que possuímos. A falta de resposta para essa pergunta transforma o tempo num mistério. Imaginamos quanto nos resta, fazemos planos e, por isso, o tempo é uma ideia, uma hipótese.
A tartaruga já vai longe, a mais de três ou quatro metros. Percebo agora que não a conseguirei alcançar, mesmo que corra, nunca a conseguirei alcançar.
Texto e fotos de José Luís Peixoto
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