Hoje é ontem e amanhã

Aos poucos, as dezenas de vendedores de comida que encontrei ao longo da rua abriram-me o apetite: pastéis de qualquer coisa, salsichas melosas, tigelas de arroz branco, sorvetes com um palmo de altura, castanhas assadas, polvo assado, lascas de peixe seco, talhadas de melão ou de ananás espetadas em pauzinhos, enormes frigideiras a fritarem cubos por identificar. Decidi provar um doce. Aproximei-me de um rapaz de avental que vendia bolas com cobertura de vários sabores, pareciam feitas de bolacha. Por gestos, escolhi uma de chocolate e outra cor de rosa, talvez de morango, e sorri. Ele enfiou-as numa bolsa de papel. Creio que cheguei a estender a mão para as receber, mas ele pousou a bolsa em cima do balcão e, de repente, começou a martelá-la com um enorme martelo de madeira. Quando ma entregou, o sorriso já me tinha murchado no rosto. Paguei com a quantia certa de wons. Após alguns passos, abri a bolsa para ver as bolas completamente esmagadas. É dessa maneira que devem ser comidas. Agora já sei.
A Coreia do Sul é muitas vezes assim. No meio de tantas diferenças, parece que encontrámos algo que conhecemos e, de repente, há um pequeno detalhe a mostrar que, afinal, não era tão simples como imaginávamos. A importância das pequenas coisas pode ser enorme. Na cultura coreana, há uma atenção extrema ao detalhe, ao rigor.
Roendo migalhas, continuei a caminhar pela rua principal de Insadong. As vozes da multidão chegavam de todos os lados porque eu era um entre milhares. À minha volta, famílias inteiras, casais de namorados, grupos de adolescentes; as vozes de todos misturavam-se com os gritos dos vendedores à porta das lojas, a distribuírem amostras de perfumes ou panfletos, vozes misturadas, palavras coreanas encaixadas umas nas outras como peças de um puzzle sonoro. Em coreano, dong significa "bairro", a divisão menor da administração local. Insadong é uma das áreas comerciais mais conhecidas de Seul. A rua principal organiza o bairro como um tronco. A partir dela, ramificam-se pequenas ruas, travessas, becos, que podem terminar em centros comerciais com vários andares, espécie de labirintos. Não há limite para aquilo que pode ser vendido em Insadong mas encontra-se muita oferta de produtos tradicionais: chá, porcelana, apetrechos de caligrafia, entre tantos exemplos possíveis. É uma zona boa para caminhar lentamente, a ver tudo, a descobrir muito.

Cheguei a Insadong a pé, através de quilómetros de túneis subterrâneos. Seul tem uma imensa rede de centros comerciais debaixo da terra. Como uma segunda cidade, a distância desses túneis pode facilmente ser comparada à extensão das ruas à superfície. Seul é uma cidade com invernos de neve, temperaturas negativas; por isso, esse abrigo faz muita falta. Já para o visitante estrangeiro, como eu, depois de horas à deriva, entrando em lojas aleatórias ou numa das maiores livrarias de Seul, que também existe num desses subterrâneos, é muito fácil não reconhecer o caminho quando se regressa à superfície.
Numa das pontas desse emaranhado de túneis, estão as ruas de Myeongdong, também cheias de possibilidades de consumo. Nesse caso, são sobretudo lojas de marcas internacionais, edifícios saturados de logótipos. Ainda no centro da cidade, mas noutra ponta, está o mercado de Dongdaemun, onde a oferta é mais popular e barata. Em qualquer um desses lugares, não falta vendedores de comida de rua, a negociarem cartuchos de papel com larvas cozidas ou batatas cortadas em espiral; e marés de gente, a parecerem saídos de um qualquer seriado da televisão coreana, desses que são vistos por milhões em toda a Ásia.
Os K-drama, como se tornaram conhecidos internacionalmente, são telenovelas bastante sentimentais que fazem parte do fenómeno a que se chamou "onda coreana" ou hallyu, e que se refere à enorme exportação cultural para todo o mundo, sobretudo para a Ásia, a partir dos anos noventa. O negócio é tão sério que há parques temáticos dedicados a telenovelas específicas. Outra vertente desta "onda" é o K-pop, que também está presente em quase todos os altifalantes dessas zonas comerciais do centro de Seul ou nas muitas lojas que só vendem posters, postais e calendários desses cantores. O mais conhecido é o famoso Psy, cujo clip de Gangnam style tem milhares de milhões de visualizações no youtube. Psy é famoso mundialmente mas, na Coreia do Sul, todos os intervenientes desse videoclip se tornaram famosos.

Na improbabilidade de faltar algo nos mercados subterrâneos ou de superfície, não é preciso ir muito longe até entrar num dos vários armazéns onde, em edifícios enormes que se destacam entre os arranha-céus, há andares a abarrotar de tudo, comida, roupas, material electrónico, tudo mesmo, andares a parecerem infinitos.
Mas a prosperidade sul-coreana não se nota apenas no consumismo generalizado ou na qualidade dos telemóveis que os jovens usam na rua. A Torre de Seul é um ponto privilegiado para assistir ao êxito material e é, em si mesma, um sinal dele. Construída no ponto mais alto da cidade, permite, durante a noite, uma visão incrível, Seul acesa; e, durante o dia, uma perspectiva única sobre a imponência e a modernidade dos edifícios. Não é preciso ser arquitecto para se deixar impressionar por essa paisagem.

Uma das muitas construções que causam esse efeito é a Câmara Municipal. Visível desde a Torre de Seul e muito próxima dos mercados já referidos, é normalmente considerada como o centro da cidade. Construída logo após a guerra civil, em 1945, a parte mais antiga esteve em funcionamento até 2008, data em que foi erguido um extraordinário acrescento, várias vezes maior do que o anterior e a estabelecer com ele um enorme contraste entre passado e o presente. Na Coreia do Sul, a fronteira entre o passado, a tradição, e o presente, a modernidade, é bastante clara em quase todas as áreas. As décadas de colonialismo japonês no início do século XX, e consequente tentativa de destruição da cultura coreana, seguidas pela devastadora guerra civil, são a razão para um hiato vincado entre o património histórico, que é muitas vezes fruto de um trabalho de recuperação, de uma reconstrução quase total. Ainda assim, ou talvez por isso mesmo, o orgulho coreano na sua cultura é enorme.
A pouca distância da Câmara Municipal, em bronze solene, encontra-se a estátua do rei Sejong, mesmo ao lado do Centro Sejong para as Artes Performativas, o maior centro cultural da Coreia com mais de cinquenta mil metros quadrados. A este rei, vulgarmente considerado o "Da Vinci da Ásia", é atribuída a invenção do alfabeto coreano, o hangul, no século XV, um feito cuja importância é celebrada com um feriado nacional em outubro, simbólico da força desta cultura e, ao mesmo tempo, representativo da emancipação face a outra potência com um passado invasor e opressor da Coreia: a China. O hangul, de raiz fonética, substituiu o sistema chinês de caracteres e democratizou a escrita na península coreana.
Mas, se não há dúvida de que o hangul sobreviveu aos séculos, conseguiu atravessar o colonialismo, a guerra e o enorme desenvolvimento industrial e económico da segunda metade do século XX, há muitos outros aspectos desta cultura que precisaram de um trabalho de recuperação comparável ao que foi feito no riacho Cheonggyencheon. A partir da estátua de Sejong, bastam alguns minutos para chegar à surpresa desse curso de água, que tinha desaparecido nos anos quarenta, tendo sido ocupado por uma via expressa e que renasceu em 2003 com características aproximadas às que tinha no século XV, exactamente quando o rei Sejon criava o alfabeto hangul.
Nas costas da estátua de Sejon, o palácio Gyeongbokgung é outro exemplo do esforço que o povo coreano tem desenvolvido para restaurar a sua história. Construído no século XIV, foi incendiado e esteve destruído durante quase trezentos anos. Foi reconstruído no século XIX e, logo na primeira metade do século seguinte, voltou a ser derrubado, dessa vez pelo colonialismo do Japão. Depois da guerra civil, voltou a ser recuperado. Neste momento, cerca de quarenta por cento da sua estrutura original está de pé. Também imperdível é o complexo de Changdeokgung, a pouca distância, composto por cinco palácios da dinastia Choson.

A visita a alguns dos vários templos do budismo coreano é fundamental na descoberta de Seul. O meu preferido é o templo de Bongeunsa, um espaço de paz entre os enormes arranha-céus da zona de Gangnam. À hora de almoço, os trabalhadores dos escritórios chegam de fato e gravata, erguendo incenso diante da testa e fazendo vénias a uma estátua de Buda com vinte e três metros de altura. Como noutros templos da cidade e do país, existe a opção de ficar hospedado e experimentar o quotidiano dos monges: a simplicidade em vez do estímulo permanente.
O entardecer sobre Myeongdong trouxe-me uma melancolia fina, nítida, leve: as luzes acesas sobre a claridade do fim de tarde, o ritmo electrónico do K-pop a tentar apressar a calma daquela hora. Entrei num restaurante apenas porque vi uma mulher vestida com o traje tradicional, o hanbok, a tocar gayageum, uma espécie de cítara coreana. Estava a precisar dessa delicadeza. Pedi bibimbap, um dos pratos mais conhecidos da cozinha coreana: arroz, muitos vegetais, alguma carne e um ovo. Enquanto esperava, as cordas do gayageum, femininas, puxadas com ponta dos dedos, como uma chuva frágil de descanso. Quando o bibimbap chegou, provei o sabor suave dos vegetais cozidos e, no fim dessa colherada, senti arder o picante do caldo. Como a Coreia, como Seul, a mistura de dois sabores, dois tempos, dois mundos.
Texto e fotos de José Luís Peixoto
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