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BAÍA DE HALONG, VIETNAME

  • José Luís Peixoto
  • há 9 minutos
  • 3 min de leitura

Um mundo dentro de um mundo




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Despertei sem relógio, talvez tenha sido acordado no interior de um sonho, talvez tenha sido acordado pela diferença horária entre Portugal e o Vietname. Lá fora, a escuridão ainda cobria a baía de Halong, o céu, as águas, as colinas de calcário. Algo me puxava, talvez o pressentimento de que o mundo estava prestes a revelar um segredo. Abri a porta de vidro e saí para a varanda do camarote. Àquela hora da madrugada, o ar estava fresco, húmido, o silêncio era profundo, apenas um marejar infantil, águas que batiam ligeiras no casco de madeira do cruzeiro. Sentei-me numa cadeira e esperei. Aos poucos, o céu começou a ganhar cores. Primeiro um azul pálido, depois gradações de lilás, rosa, algum dourado. As silhuetas dos ilhéus surgiam diante de mim, levantavam-se como sombras flutuantes, uma capa de nevoeiro flutuava na superfície da água. Ali, na varanda, só eu e aquele dia novo e imenso, assisti a uma cerimónia íntima, o lento acender da luz sobre a paisagem. A água continuava calma, imperturbável, era um espelho daquele céu em lenta transformação. De vez em quando, uma garça cruzava a lonjura, desenhando formas no ar com o bater lento das asas. O segredo era aquele amanhecer, eu era a única pessoa do mundo a testemunhá-lo, acreditava nisso. A baía revelava-se devagar, ilha a ilha, todas as cores a surgirem aos poucos. Na varanda do camarote, com os pés descalços e o coração tranquilo, senti que albergava palavras imensas.


Talvez por isso, fui buscar os cadernos e as folhas impressas do que já tinha escrito do romance em que estou a trabalhar. Sentei-me numa das cadeiras da varanda, ainda dentro da penumbra e, com a claridade da alvorada, entrei nessas páginas. Não se trata de um texto sobre aquele lugar, nem sobre a baía de Halong, nem sobre o Vietname, nem sequer sobre a Ásia, descreve um mundo de corredores, muito distante dali, mas, mesmo assim, ou talvez por isso, encontrei nitidez ao observar as descrições daquelas páginas. Folheei o que tinha escrito, fiz anotações nas margens, sobre as linhas, risquei frases que perderam sentido entre o tempo em que foram escritas e aquele instante ali, madrugada na baía de Halong. Reescrevi passagens inteiras, identifiquei e corrigi hesitações, trabalhei ritmos, palavras repetidas, palavras repetidas, frases mais longas, com longo desenvolvimento, com enumerações, com meias enumerações, sem enumerações. A intimidade física da revisão em papel sente-se no corpo. Naquela hora, essa sensação misturava-se com a temperatura daquele início de dia vietnamita, eu sabia que o calor sério se preparava para chegar, ninguém poderia fugir dele, mas, ali, existia ainda aquela trégua.


Ao rever o que tinha escrito, ao voltar a ideias onde já tinha estado, ao olhá-las como se fosse um visitante novo, o tempo abrandava, aprofundava-se. Ao editar o texto, eu sentia que esculpia aquele momento. No início, o próprio texto parecia envolto em névoa, frases indecisas, ideias por definir, ilhéus ainda submersos na bruma e, aos poucos, com paciência, luz, formas a revelarem-se. Da mesma maneira como o sol desenhava contornos nas rochas, como separava céu e mar, também a revisão de texto dava afinação e justiça. Aos poucos, aproximava-me do instante em que tudo se alinhava: a respiração dos parágrafos, a paisagem completa, inteira.


Um dia, quem ler as páginas que trabalhei ali, as frases que foram escritas naquela varanda, não poderá adivinhar que nasceram na baía de Halong. Nessas páginas, não há qualquer descrição da paisagem, não há barcos a deslizarem entre rochedos, não há névoa a levantar-se de encontro ao amanhecer. As personagens habitam outro lugar, outro clima, outras coordenadas. Ainda assim, acredito que algo daquele início de dia ficou gravado nas páginas desse romance ainda em construção. Não de um modo literal, não em nomes ou referências diretas, mas em fôlego, em densidade. A literatura transporta o mundo de formas que, com frequência, não são evidentes. A literatura é uma forma de expressão tão antiga, tão inaugural do mundo que, às vezes, quase parece confundir-se com aquela natureza imensa, aquela transcendência. Quando falamos, podemos dizer um pouco do que sabemos mas, com toda a certeza, dizemos sempre muito que não sabemos. Quando falamos, há sempre algum entendimento que chega a quem tenta interpretar, mesmo que, com frequência, esse entendimento não seja feito de palavras.


Naquela madrugada e, logo a seguir, naquela manhã, esse texto existiu no interior da baía de Halong. Agora, de alguma maneira difícil de definir, é a baía de Halong que existe no interior desse texto.





Texto e fotografia de José Luís Peixoto

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© José Luís Peixoto

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