Claridade sobre o Porto
Estranhamente, neste fim de julho, tarde de sol, as fachadas têm a cor do céu escurecido de novembro, têm a sua nitidez líquida: superfícies verticais de nuvens ou de sombras. Depois, fixando o olhar, ganhando familiaridade, as cores revelam-se no interior desses tons, descobre-se verão nessa sobriedade. Desde que chegámos ao Porto, estacionámos a carrinha, perdemo-nos em várias ruas, almoçámos, foi também assim com as pessoas: os seus rostos começaram por apresentar-se sérios, os bigodes dos homens pareciam desconfiar de alguma coisa que dissemos, as mulheres receberam-nos com timidez agreste, mas logo a seguir, nas segundas ou terceiras frases trocadas, destapou-se o brilho, apenas no canto dos lábios ou do olhos, sorriso tão limpo. Sem palavras, foi-nos dada licença absoluta para avançarmos por essa generosidade adentro.
Caminho ao lado da minha mãe. Delicada, presta atenção aos passos, escolhe as pedras que pisa, talvez os seus sapatos não sejam adequados a esta calçada inclinada, descida no sentido da Ribeira, ou talvez falte adequação ao seu corpo. A vaidade dos meus quinze anos e das sapatilhas que levo calçadas não me permite reconhecer que, um dia, serei mais velho do que a minha mãe, descerei esta mesma rua com mais dificuldade ainda. No entanto, deixei-me ficar para trás, com uma sabedoria que não sei de onde vem, aproveito a companhia da sua presença. Não conversamos, mas sentimo-nos.
O meu pai e a minha irmã seguem juntos, levam-nos um avanço de vinte passos. A cidade envolve-os com sons que chegam de longe, mistura de gente e de máquinas, murmúrios das pedras e dos séculos. A minha mãe e eu apenas temos de seguir esses vultos familiares. Quando desaparecem numa curva, apressamo-nos até à surpresa da rua seguinte, casas altas, o céu sobre elas, desenhado pelos beirais e, lá adiante, o meu pai e a minha irmã, contornos que conhecemos de outros lugares, que reconhecemos sem esforço, como se fossem a nossa própria imagem.
Há minutos, meia hora talvez, a minha irmã estava sentada num degrau da Torre dos Clérigos. As vertigens não a deixavam subir ou descer. Pouco se incomodou enquanto foi por um longo túnel de escadas em caracol, a tocar as paredes de granito com a palma das mãos, mas quando chegou à primeira abertura sobre a praça, o mundo lá em baixo, as pessoas lá em baixo, sentou-se naquele degrau, colada. Não confiava nas pernas, tremiam-lhe. Eu, claro, aproveitei para subir e descer, mostrar como era fácil, como era infundada essa fobia. Custou convencê-la a levantar-se, foi o meu pai que realizou essa façanha.
Mas agora não pensam nisso, tenho a certeza. Agora, só o futuro os convence, decifram estas ruas que aqui estavam para nós, este caminho até ao rio, a puxar-nos, este magnetismo. O meu pai e a minha irmã à frente, a minha mãe e eu ligeiramente atrás. Avançamos para o Douro, como se soubéssemos já o esplendor que nos aguarda, como se conhecêssemos essa grandiosidade desde sempre, como se a levássemos no nosso interior.
Texto e fotos de José Luís Peixoto
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