top of page
  • José Luís Peixoto

OEIRAS, PORTUGAL

Atualizado: 30 de out. de 2020


O sangue de Fernando Pessoa






Imaginou-se tantos, com tantos nomes e tantas vidas, mas creio que, mesmo assim, nunca se deve ter imaginado de metal, imóvel numa mesa de esplanada, com pessoas a sentarem-se ao seu lado e a tirarem fotografias durante todo o dia. Enquanto Fernando Pessoa escrevia rascunhos de poemas em folhas de papel almaço, nas margens de cadernos de contabilidade, fechado no quarto ou solto em Lisboa, não creio que tivesse sido capaz de imaginar essas mesmas palavras cantadas em tantos fados modernos, citadas por gente alta e baixa até para exprimir o exacto oposto daquilo que o poema inteiro sugere, ou esculpidas na pedra, moldadas em ferro forjado, e utilizadas em monumentos encomendados por câmaras municipais para rotundas.


Não é fácil ser o poeta no país dos poetas. Nas escolas secundárias, há alunos que estão agora a descobri-lo, a encantar-se com a música das suas ideias, e há outros que estão, também agora, a amaldiçoá-lo e a dizer: de certeza que este gajo não pensava em nada de especial enquanto escrevia estas cenas. Nas ruas da sua cidade, há aqueles que acham que se fala demasiado nele e, logo a seguir, no mesmo passeio, há aqueles que o confundem com o velho jornalista de televisão, Fernando Pessa, e tentam ter graça ao repetir a frase que este dizia sempre no fim de todas as reportagens: e esta, hein?


Quando o meu filho era mais pequeno, tinha três ou quatro anos, chamava-lhe "o poema". Via uma imagem do Fernando Pessoa num livro, via alguém disfarçado de Fernando Pessoa, com óculos e bigodinho, e dizia logo: olha o poema. Nessa altura, costumávamos passar fins de tarde a brincar no Parque dos Poetas, em Oeiras, onde existe uma estátua do Fernando Pessoa. Um dia, estava a ser reparada e tinham-lhe arrancado a cabeça.


Pai, arrancaram a cabeça ao poema.


Na noite passada sonhei com o Fernando Pessoa. Sem que tenha chegado a ser um pesadelo, foi um sonho bastante perturbador. Acordei no momento em que estávamos a dar um beijo na boca. Não sei como chegámos a essa intimidade, não me lembro. A memória que tenho nasce num movimento que levava já esse destino. Recuando, não consigo chegar a nenhuma conclusão, a memória desfaz-se em abstracções, perde o esqueleto. Sei apenas que acordei a sentir-lhe o bigode a fazer-me comichão à volta dos lábios e com uma valente sensação de incómodo. Ainda no sonho, eu queria despertar e ele tentava convencer-me a não o fazer, tinha vontade de continuar na beijocada. Dessa maneira, estremunhado, acordei ainda a ouvir a sua voz. Era uma voz humana, como a de um homem qualquer, como a de um homem a queixar-se do atraso dos transportes públicos.


Pai, arrancaram a cabeça ao poema.


As crianças de três ou quatro anos são capazes de tanta seriedade. Nessa tarde, o meu filho levava a bola debaixo do braço, mas esqueceu-a. Em respeito, aproximou-se devagar da estátua sem cabeça. Com as pontas finas dos dedos escolheu algumas lascas de mármore que estavam ao lado dos sapatos de pedra. Estendeu-mas e disse: leva, pai, é o sangue do poema.







Texto e fotos de José Luís Peixoto

bottom of page