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  • José Luís Peixoto

MOSCOVO, RÚSSIA


O melhor da vida em rublos





Estava distraído. Estava meio adormecido ainda. Era de manhã, muito cedo, e estava um pouco lento. À distância, decidi tirar uma fotografia a um pequeno jardim com uma estátua no centro. Não sei se cheguei a fazê-lo ou se só apontei a máquina, apenas sei que, de repente, houve uma mulher que começou a gritar comigo a plenos pulmões. Eu estava no outro lado da rua e, entre mim e a estátua, um pouco à esquerda, havia um conjunto de duas ou três casas de banho portáteis, cubículos de plástico, que eram o negócio da mulher que gritava. A avaliar pelo tom e pelos gestos, percebi que não queria ser fotografada. Mas enganou-se, eu não estava a fotografá-la. Aliás, antes daquela gritaria, eu não tinha sequer reparado nela. Abalroado pelo susto, com o combustível do sentido de injustiça, gritei-lhe também. Ao receber a minha resposta, surpreendeu-se. Talvez estivesse habituada a turistas mais tímidos. Devolvi-lhe exatamente o que me estava a dar a mim: alguém a gritar com maus modos numa língua completamente incompreensível. Logo a seguir, ela voltou ao ataque e ficámos presos nessa cena: a gritarmos um com o outro a partir de lados opostos da rua, ela em russo, eu em português. Quando me cansei, virei-lhe as costas. Ela continuou lá, a gritar.


No centro de Moscovo, nas áreas onde há mais turistas, encontram-se várias dessas casas de banho portáteis. Tentam responder à aflição que surge às vezes, quando se está fora de casa, e que se resume no desabafo: agora pagava o que fosse preciso por uma casa de banho. A pergunta que os encarregados dessas casas de banho moscovitas parecem fazer é: exatamente quanto é que pagava? Hão de negociar esse valor, acrescentar-lhe alguns rublos. Se o turista achar caro, eles esperam, têm tempo. As casas de banho são um negócio que tende a valorizar em poucos minutos.


Sei bem que há exceções abundantes à espera de contradizer qualquer generalização, fazendo-a passar por mentirosa, descredibilizando-a, expondo os ângulos da sua falsidade. Em Moscovo, aconteceu-me várias vezes pedir direções a pessoas que se desfizeram em amabilidades, que me pediram para acompanhá-las, que me deixaram com a impressão de que se tinha afastado do seu caminho apenas para me ajudar. Ainda assim, com bastante mais frequência, assisti à forma como o rosto de muitos outros se transformou ao perceber que eu era estrangeiro. Dirigiam-se a mim em russo e, quando tentava dizer-lhes que não percebia, era como se me tivesse ficado invisível de repente, não voltavam a olhar para mim. Se estavam a vender-me algo, atiravam as moedas do troco com desprezo. Não sempre, claro, mas quase sempre. Essa forma de reagir parece ser o sinal de um sentimento ou de uma crença mais profunda. A maioria dos museus tem preços diferentes para russos e para turistas estrangeiros. E refiro-me a instituições bastante mais credíveis do que casas de banho de plástico, como o Teatro Bolshoi por exemplo. Essas diferenças de preço chegam a estar afixadas, para que não haja dúvidas, e oscilam entre sete a quinze vezes mais do que o preço para russos. Se algum estrangeiro, por ardil ou acidente, se atrever a entrar com um bilhete “de russo”, sofre um vexame público por parte dos cobradores de bilhetes.



Ainda assim, é nos táxis que as diferenças são mais incríveis. Por uma viagem de duas ou três estações de metro, que custa 28 rublos, um taxista sem se engasgar, com o ar mais natural, pode pedir algo como 1500 ou 2000 rublos. Tratando-se de um taxista oficial, com um carro a dizer "táxi", não baixará muito esse valor. Se for um taxista clandestino a negociar com estrangeiros, poderá chegar aos 400 ou 500 rublos após grande insistência. Também para os russos, que conseguem tarifas bastante mais baixas do que estas, os táxis clandestinos são muito mais baratos do que os oficiais. Por isso, em Moscovo, a forma de apanhar táxi é levantar o braço na berma da estrada e esperar que alguém pare.


As vantagens desta situação é que se acaba por andar de metro. Sob vários aspetos, andar de metro em Moscovo é um privilégio. Abriu ao público em 1935, com apenas treze estações. O seu crescimento continuou no que restava dessa década, sendo uma das prioridades e orgulhos do regime soviético. O cuidado colocado na forma como cada estação foi pensada arquitetónica e decorativamente faz com que o metro de Moscovo seja único em todo o mundo. A iconografia soviética é representada através das técnicas mais diversas. Desde frescos nas paredes a estátuas de tamanho e expressividade impressionantes, desde enormes trabalhos de porcelana a painéis empedrados, há lugar para um desfile deslumbrante de riquezas. Os tetos são trabalhados ao pormenor, com lustres imponentes, variando sempre de estação para estação. Ao mesmo tempo, a conservação e limpeza de todas as áreas é total. Ao longo do metro de Moscovo, encontramos Lenine, Estaline, o ideal soviético de proletariado e de campesinato, os atletas perfeitos, foices, martelos, estrelas, as realizações da indústria e da agricultura e muito mais, a visão de um mundo tornada sólida através da pedra e do metal. É difícil salientar apenas algumas estações, mas não resisto a mencionar Ploshad Revolyutsii, onde existe uma incrível galeria de figuras de bronze a representarem múltiplas vertentes do ideal soviético e onde os cães dos guardas de fronteira têm o focinho gasto porque tocar-lhes traz boa sorte nos exames escolares; da mesma maneira tocar no pé da estudante, também gasto, é remédio para amores infelizes. Podia também mencionar Elektrozavodskaya, ou Prospekt Mira, ou Arbatskaya, monumentos subterrâneos, onde uma certa opulência se cruza com a modernidade inerente ao facto de serem espaços atravessados por máquinas sobre carris. Como num sonho antigo de futuro, como num cenário que Jules Verne tivesse imaginado no século XIX.



Hoje, em 2011, o metro de Moscovo tem 185 estações, atravessa uma distância de mais de 300 quilómetros e, nos dias de semana, transporta cerca de sete milhões de passageiros. Essa é uma das dificuldades deste meio. Há gente a todas as horas. Em horas de maior fluxo de passageiros, é preciso esperar que passem três ou quatro metros até se conseguir entrar. Além disso, para os estrangeiros, quando se muda de linha, nem sempre é fácil encontrar todas as direções. O alfabeto cirílico contribui bastante para essa dificuldade. Outro obstáculo poderá ser encontrar a saída. Entre corredores que são atravessados em todos os sentidos por multidões, nem sempre é fácil encontrar o caminho que nos leve ao exterior e, dando-se o caso de conseguir, o mais certo será não se acertar na rua pretendida. Ainda assim, com paciência, vai-se conseguindo chegar a todos os lados.


O destino mais popular para quem visita Moscovo pela primeira vez é, quase de certeza, a área do Kremlin e da Praça Vermelha. Há uma enorme agitação à volta da praça. Sem parar, megafones anunciam algo a partir de todos os lados. Ainda antes da entrada, há um círculo traçado a cobre no chão, decorado com figuras de animais. As pessoas aproximam-se uma a uma, posicionam-se no seu centro e atiram uma moeda sobre o ombro. Atrás, septuagenárias de gabardina e lenço na cabeça, baixam-se imediatamente, apanham a moeda e guardam-na no saco de plástico que seguram. Não se zangam, cada uma tem a sua área específica para apanhar as moedas que lhe cabem. Esse gesto acontece repetidamente, sem parar. As moedas são de muito baixo valor.




Toda a gente é revistada à entrada da Praça Vermelha. Depois de esvaziar os bolsos e passar no detetor de metais, depois de abrir as malas, chega-se a um espaço que, inevitavelmente, impressiona os sentidos, impressiona a consciência de estarmos ali, termos chegado ali. À direita, está o mausoléu de Lenine; um pouco mais atrás está o Kremlin; à nossa frente, lá bem ao fundo, está a Catedral de São Basílio. Por todo o lado, há famílias, casais ou grupos de amigos a pousarem para fotografias. Há pessoas sozinhas que esticam o braço à frente do rosto para se fotografarem a si próprias. Nos megafones, as vozes desfiam uma narrativa que não termina e que não parece repetir-se, sempre ao mesmo ritmo, monocórdica. A Praça Vermelha é mais longa do que eu pensava, 330 metros de comprimento. Até chegar à Catedral de São Basílio, passo por noivas, vestidas de branco. Cada uma com o seu bouquet, cada uma de braço dado com o seu noivo, seguidas pelos convidados do casamento. Passo também por grupos de crianças da escola, loiras e ordenadas, crianças pequenas a olharem para todos os lados. E chego à Catedral de São Basílio, talvez a imagem mais conhecida de toda a Praça Vermelha, símbolo internacional da Rússia, apesar de, curiosamente, a sua traça não ter paralelo na tradição arquitetónica russa ou bizantina. O colorido das suas cúpulas chama bastante a atenção, o modo como as cores ganham vida umas em contraponto às outras, rodeando aquelas formas, magnetiza o olhar. É simbólico que ocupe o centro geodésico da cidade de Moscovo. Pessoalmente, recordo-a das participações em direto nos noticiários, sobre o ombro dos enviados especiais ou dos correspondentes na Rússia.


A Catedral de São Basílio é composta por oito igrejas reunidas em torno de uma igreja principal e central. Em corredores labirínticos, vai-se passando por frescos nas paredes, candelabros, e formas arquitetónicas ímpares e, depois, existe a surpresa das igrejas, sempre muito altas e estreitas, como poços ao contrário, com as paredes e os tetos preenchidos por frescos, altares e ícones. Na igreja principal, tive a felicidade de ouvir um grupo vocal masculino, quatro homens, a tirarem proveito sublime do eco, a transformarem-no numa emoção transcendente.



Ainda assim, a pequena Catedral de São Basílio não pode sequer começar a ser comparada com outras, muito mais imponentes. Um exemplo flagrante encontra-se a pouca distância: a Catedral do Cristo Salvador. Se estiver bom tempo, esse é um passeio bastante tranquilo nas margens do Moscovo, o rio que dá nome à cidade. O contorno da Catedral do Cristo Salvador começa a notar-se ao longe. A cúpula dourada, enorme, toca o céu. Para lá das suas caraterísticas específicas, da sua beleza, esta catedral tem também a vantagem de estar em atividade plena. Assim, há a possibilidade de assistir à vivência de uma religiosidade que, em certos detalhes do seu culto, se afasta daquela que conhecemos entre nós. À entrada, na rua, ainda na escadaria, toda a gente se benze, as mulheres tiram lenços da mala e cobrem os cabelos. Na berma da estrada, estacionadas uma atrás das outras, há limousines de casamentos, cobertas por balões. À volta da catedral, há noivos a sorrirem para fotografias. Também há noivos lá dentro. Uma parte desses casais espera pela sua vez diante de um túmulo feito de prata e vidro; depois, benzem-se e beijam o túmulo. Cheira a cera morna, derretida, ardem velas muito finas. Há papéis que as pessoas preenchem com os seus desejos, cirílico manuscrito, e que depositam numa caixa de madeira, com uma expressão séria de fé no rosto.



Entretanto, na Praça Vermelha, outra espécie de fascínio, ou de fé, leva dezenas de pessoas a esperarem em fila. O mausoléu de Lenine é uma estrutura sólida de granito, com aparência de bunker antinuclear, com a palavra "Lenine" escrita em enormes letras sobre a porta. A visita ao Mausoléu é gratuita e apenas possível durante as manhãs. A entrada é feita através uma sequência de túmulos, entre os quais o de Estaline. Depois de uma espera tão grande, há vontade de prestar atenção a todos os detalhes. Finalmente, quando se entra no mausoléu, é tudo bastante rápido. O corpo embalsamado de Lenine repousa no centro, no interior de um túmulo de vidro, com fato e gravata, a parecer que é feito de borracha. As luzes sobre ele são muito baixas. No resto da divisão, a penumbra. Encostados às paredes, a fundirem-se com as suas próprias sombras, há guardas a proibirem fotografias e a apressarem os visitantes que fiquem parados mais do que apenas alguns segundos. Estar na presença do corpo embalsamado de Lenine é uma experiência estranha. À saída, quando se regressa à agitação da Praça Vermelha, há alguma coisa que mudou, que se vê de modo diferente.



Para quem tenha boas pernas, o centro de Moscovo pode ser explorado a pé. Por todo o lado existem episódios e detalhes que não podem ser observados de outra maneira. A zona de Kitái Górod ou a rua Arbat são bons exemplos de áreas que devem ser visitadas em ritmo de passeio. Uma excelente alternativa, que dará uma perspetiva única da cidade, é a travessia de barco no rio. Durante os meses de bom tempo, uma vez que essa possibilidade não existe entre outubro e a primavera. Nessa época, apenas existe o gelo.


Aos fins de semana, um pouco deslocado do centro, existe o mercado Izmailovsky a merecer a visita. Todos os preços, depois de regateados são muito mais baixos do que as lojas de turistas do centro da cidade. Além disso, oferecendo uma mistura de objetos novos e usados, este é o mercado onde se pode encontrar de tudo. Logo à entrada, passo por um homem com uma mala de cartão cheia de tasers para venda. Mas é possível encontrar objetos mais convencionais, como as inevitáveis matrioscas. Mas também é possível comprar ursos embalsamados, ou fatos tradicionais russos, ou as edições russas de discos do Elton John em vinil, ou cartazes soviéticos acerca de todas as ocasiões, ou bonecos gravados em madeira, ou artefactos militares, cápsulas de granadas, cápsulas de minas, ou quadros, há uma secção enorme do mercado só dedicada à pintura, ou todo o bric-a-brac russo que se possa imaginar.

Além de tudo isto, de noite, há outra vida em Moscovo, há outras vidas, plural. A noite moscovita tem as mais diversas cores e ritmos: os clubes alternativos mais exuberantes, os cenários mais inesperados para as escolhas menos óbvias. E também tem vodka. Para o melhor e para o pior, a noite moscovita tem uma dose generosa de vodka.


Em Moscovo, à superfície, encontrei a rigidez das estátuas, rostos gravados na pedra. Mas, para lá da superfície, tenho a consciência de que, para lá da superfície, há o mistério. Não sei se cheguei sequer ao início de desvendá-lo. Preciso voltar.



Fotos de Leonel de Castro, Nikolay Vorobyev, David Torres, Felipe Simo, Marianne Bos e Andrey Grodz,

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