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  • José Luís Peixoto

LEIPZIG, ALEMANHA

Atualizado: 30 de out. de 2020


Reaprender alemão



Anoiteceu subitamente às seis da tarde, logo noite escura. O centro histórico de Leipzig é todo pedonal. Entrei pela Grimmaische straße, admirando-me com as pequenas coisas: as pessoas a falarem alemão na rua, e eu, aos poucos, a lembrar-me de palavras que decorei noutra vida. Sem pressa e sem destino, avancei, reparando nas montras, prazer simples que, com este gosto, não sentia há anos, prazer cuja existência tinha esquecido da mesma maneira que desaprendi o género dos substantivos mais elementares da língua alemã.


Debaixo de arcadas, um homem tocava uma versão para acordeão da tocata e fuga em ré menor, a mais famosa das tocatas de Bach, compositor diretamente ligado a Leipzig, que aqui terminou os seus dias como diretor musical da cidade e que, com certeza, nunca imaginou esta multiplicação de reproduções da sua figura em tantos objetos: chocolates, camisolas, porta-chaves.



Logo a seguir, cheguei à Praça do Mercado (Markt), imensa debaixo de um outono alemão, gotas finas de água gelada que, espaçadas, começaram a cair do céu negro. Gente atravessava essa praça em todas as direções. Ora vinham de ruelas de esplanadas, mesas com copos altos de cerveja, protegidas por enormes guarda-sóis (guarda-chuvas, guarda-luas); ora vinham do lado do edifício mais imponente da praça, o Museu da Cidade.


A chuva não me incomodou, fiquei só observar as imagens que estavam diante de mim, arquitetura inequivocamente alemã, e as imagens que levava por dentro: tinha acordado em Portugal de madrugada, táxi até ao aeroporto, todos os procedimentos do aeroporto, detalhes que não fazia há demasiado tempo, saudades do check in, saudades do duty free, e a viagem de avião, os cintos de segurança, quase como se fosse a primeira vez, o altifalante a informar a temperatura em Berlim, a aterragem, o táxi até à estação de comboios, Hauptbahnhof, paisagem de florestas durante duas horas, e a chegada a Leipzig.



Reparei também na Igreja de São Tomás, a torre é visível desde a Praça do Mercado. Lembrei-me da diferença de pronúncia entre Kirche (igreja) e Kirsche (cereja). Quanto tempo terei passado na faculdade à volta dessa fronteira fonética? Decidi que no dia seguinte, haveria de visitar a essa igreja, essa Kirche, onde está sepultado Bach. E assim chegou a hora do encontro que tinha marcado.


Muito perto, fica a Mädler-Passage. Este é um espaço que impressiona pela arquitetura, altas arcadas do início do século XX, uma galeria comercial que, curiosamente, foi construída à volta de Auerbachs Keller, o restaurante onde decidimos encontrar-nos. Este é um dos lugares mais emblemáticos de Leipzig, muito devido a Goethe, que aqui localizou o primeiro lugar onde Mefistófeles leva Fausto, no seguimento da aposta que fez sobre a alma deste.



Depois de descermos as escadas, o impacto do restaurante: empregados que passam com grandes tabuleiros, o clamor da multidão. No século XVII, Goethe foi aqui estudante e, já no século XIX, quando concluiu Fausto, não esqueceu aquele que tinha sido o seu restaurante preferido em Leipzig, mencionando-o diretamente numa das suas obras mais emblemáticas. Também a cidade de Leipzig e todo este espaço não esqueceram Goethe e a sua versão de Fausto. Essa memória, está presente desde as magníficas estátuas da entrada até aos painéis que decoram todo o restaurante. No fim do jantar, a nosso pedido, levaram-nos à sala fechada que Goethe descreve e onde hoje se diz que escreveu algumas páginas durante a sua passagem por Leipzig.


Antes disso, no entanto, tivemos a alegria de uma refeição da Saxónica, carne com molho, batatas e couve avinagrada, ementa perfeita para uma noite de outono como esta e, sobretudo, tivemos a alegria de uma conversa ao vivo, sem skype, zoom ou whatsapp. Em Leipzig ou em qualquer outra parte do mundo: cinco pessoas a conversarem à volta de uma mesa. Parece tão simples e, no entanto, que privilégio.



Texto e fotos de José Luís Peixoto


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