Antes e depois do tempo
Deitado na terra, o balão parecia um gigante desfalecido, sem forças até para o mínimo. A madrugada transformava-se devagar em manhã. O céu rejuvenescia e, com ele, mudavam as cores de tudo: as rochas, a distância, os rostos. Era um céu surreal, povoado por balões de ar quente, como planetas sem órbita, lá no alto ou mais abaixo, balões espalhados por toda a lonjura: espécie de gotas ao contrário, cheias, imensas, a flutuarem, a levarem cor e pequenos cestos carregados de pessoas.
Como se lhe insuflassem uma alma, um grupo de homens começaram a apontar uma máquina de fogo para o interior do balão. Com grande barulho, rugido de dragão, a máquina jorrava chamas e, dessa maneira, o balão outrora moribundo parecia restabelecer-se. Não nascia, renascia. Era evidente que estava habituado ao céu, entendia-se pelo entusiasmo dos homens. Não era a primeira vez que se preparava para o milagre de voar.
Entrei no cesto e fiquei rodeado por um grupo de franceses: aquela língua, aquela música. Depois de algumas informações, sentimos o momento em que nos erguemos, desligados do chão. Esse instante conteve um espanto. Com muita delicadeza, com justiça, fomo-nos elevando. A manhã era limpa, nítida. À medida que subíamos, estendia-se diante de nós a paisagem insólita e soberba da Capadócia.
Faço aqui uma pausa nesta descrição, voltarei a ela mais tarde. Agora, precisaria de um balão assim para medir a viagem que fiz à Turquia. Acabei de chegar. a casa A poucos metros de onde escrevo estas palavras, está a mala à espera de ser desfeita.
O presente dispõe de muitas artes para nos envolver. Há tudo aquilo que se lança de encontro aos nossos sentidos. Há a consciência irrepetível de estar num lugar e num momento. Como um balão de ar quente a levantar voo, desprendemo-nos do tempo: o momento preciso em que deixa o chão e, depois, a afastar-se, a ganhar em perspectiva e a perder em detalhe.
Agora, ao pensar em Istambul, tudo se mistura: vozes a oferecerem-me cubinhos de doces de pistacho no Grande Bazar, a aragem fresca do Bósforo a bater-me no rosto, o olhar dos velhos ou os pombos chegados do céu, a pousarem em bando no pátio da mesquita. Entre as cidades, acredito que Istambul se presta a uma memória especialmente difusa. Em Istambul, há mundos simultâneos e, às vezes, sobrepostos. Não é preciso caminhar muito para se passar de um a outro. Ainda com o sabor de um mundo, ainda debaixo da sua sombra, já se está noutro mundo, seguindo outra ordem.
Ordem, eis o que preciso. Uma lista irá ajudar-me a organizar esses dias que iniciaram já o seu caminho de afastamento mas que ainda estão aqui tão perto.
1. Ruas
Passava das onze da noite, a praça Taksim era atravessada por grupos esparsos de gente sem pressa. Noutros dias, essa é a praça das grandes manifestações, o centro simbólico de Istambul. Naquela hora, seria difícil imaginar esses ajuntamentos aguerridos. Entre carrinhos a venderem pirâmides de castanhas assadas, deambulavam rapazes a lançarem fumo de cigarros para o ar, homens de bengala, casais jovens a empurrarem filhos que aprendiam a andar de bicicleta, grupos de raparigas envoltas em risinhos. Seguindo essa maré, ao fim de poucas dezenas de metros, como uma surpresa para a qual não seria possível estar preparado: a avenida Istiklal.
Nas pequenas ruas em volta, como labirintos perpendiculares, havia esplanadas cheias de gente, música, vozes sobrepostas, a língua incompreensível e enxameada da festa. E, de regresso à Istiklal, bancas de mexilhões cozidos, vendidos à unidade; músicos espontâneos a tocarem clarinete; espetos de kebab eternamente à roda. Com quase três quilómetros pedonais, disseram-me que a avenida Istiklal está sempre cheia. Sei que eram quase duas da manhã quando saí, num dia de semana, e estava repleta de gente de todas as idades, ainda algumas crianças. A música chegava de toda a parte e continuava ao mesmo volume.
2. Mesquitas
A "sofia" referida no nome da basílica não é uma santa, é o sagrado conhecimento. Esse resto de grego antigo acompanha o edifício desde a sua construção, vontade do Império Bizantino no século VI. Com a excepção de cinco décadas do século XIII, em que chegou a ser católica romana, a Basílica de Santa Sofia foi catedral de Constantinopla até ao século XV. Em 1453, o Império Otomano transformou-a em mesquita. Assim ficou até à sua secularização, em 1931, passando a museu logo a seguir. As suas paredes a sintetizarem a história da Turquia.
E entra-se num mundo completo: o tecto como um céu, enormes pilares de mármore sob uma luz dissolvida na sombra, mosaicos a cumprirem todos os tons de um universo que só existe ali. É difícil encontrar palavras que não reduzam um momento tão íntimo e pessoal. Aceito esse risco: naquele interior, senti que dentro de mim, existe também um lugar assim. Em visita, encontrei a minha basílica interna, invisível.
A Mesquita Azul, construída pelos otomanos no século XVII, sempre foi muçulmana. É obrigatório descalçarmo-nos. As mulheres têm de cobrir a cabeça. As máquinas fotográficas tentam ser mais discretas, há gente a orar. O azul dos mosaicos de Iznik preenchem-na com uma atmosfera muito própria, arquitectura de paz. No nome, o azul serve para facilitar a vida aos estrangeiros já que os turcos apenas lhe chamam Sultanahmet Camii, Mesquita do Sultão Ahmed, que foi quem a mandou construir, com o propósito de suplantar a beleza e a grandiosidade da Basílica de Santa Sofia.
Quem pode dizer se foi bem sucedido? O tamanho mede-se com fitas métricas, mas faltam aparelhos certos para medir a beleza. Aquilo que conseguiu, sem dúvida, foi contribuir para um dos conjuntos arquitectónicos e místicos mais marcantes do mundo.
3. Cisterna
Existem centenas de cisternas subterrâneas em Istambul. Foram construídas prevendo um cerco à cidade e a destruição do aqueduto. A maior cisterna fica a poucos metros da Basílica de Santa Sofia e ocupa uma área de dez quilómetros quadrados.
Há o mundo da superfície, o céu e o desprendimento com que as pessoas se passeiam ao ar livre. Depois, há a gravidade com que tudo existe debaixo da terra, como se esse tempo fosse menos efémero, menos irreversível, como se houvesse sempre algo que permanecesse nesse tempo.
Desce-se as escadas até esse lugar onde se caminha sobre trinta milhões de litros de água, entre mais de trezentas colunas romanas, transportadas desde templos da Anatólia e dispostas em geometria perfeita. Debaixo de luzes vermelhas, os visitantes caminham pelas passadeiras que foram construídas para eles, dirigem-se à coluna que assenta sobre a escultura de uma cabeça da Medusa, vão fotografá-la milhares de vezes, sempre e sempre, sem parar até ao fim dos tempos.
3. Mercados
Um círculo maior de vidro azul escuro; outros menores, concêntricos, de vidro mais claro e branco, como uma íris; e uma pinta no centro, como uma pupila. Há olhos de vidro contra o mau-olhado à venda em toda a parte, pendurados em todo o lado, de todos os tamanhos, com todas as formas: pulseiras, imãs do frigorífico, pingentes, porta-chaves. A avaliar pela quantidade de amuletos, é possível que a Turquia seja o país do mundo onde há mais invejosos.
Não é difícil crer que o Grande Bazar seja o lugar onde se venda o maior número desses olhos. São um produto muito comum nas cerca de três mil lojas que compõem essas sessenta ruas cobertas, um dos maiores e mais antigos mercados cobertos do mundo. Não sei quanto tempo seria necessário para ver tudo, para encontrar o melhor preço seja do que for. No interior do Grande Bazar, os espaços são divididos por áreas de negócio: tapetes, couros, joalharia, roupas, mobiliário, etc. Mas não são apenas os produtos que merecem atenção, há o próprio mercado, arquitectura e história, e há as pessoas: locais a fazerem compras quotidianas e estrangeiros, como eu, a olharem, consumindo com os sentidos. Elásticos e equilibristas, contornando uns e outros sem os distinguir, contornando vultos, passam rapazes com tabuleiros de copinhos com chá.
Saindo por uma das portas do Grande Bazar, chega-se sempre a ruas de lojas. Ao ar livre, as pessoas parecem esforçar-se por fazer mais barulho, a música das lojas grita mais. Ainda assim, em horas certas, de surpresa, as vozes dos altifalantes das mesquitas calam toda a gente, sobrepõem-se a tudo e é como se ressoassem do interior do peito. Além disso, há a loucura caleidoscópica de todo o tipo de objectos à venda: lojas inteiras de acessórios brilhantes para casamentos e baptizados, lojas de vestidos de gala incrivelmente espampanantes, sumo de romã em cada esquina e os manequins mais sinistros a serem apreciados por mulheres completamente cobertas pelo véu muçulmano ou com aspecto ocidental, de cabelo oxigenado, como chamas entre a multidão.
Desde o Grande Bazar ao Bazar das Especiarias é sempre a descer e nunca se passa por uma rua sem lojas. É o segundo maior mercado coberto da cidade. De dimensão mais razoável, ambiente mais tranquilo, aparenta, de um modo geral, ter produtos mais sofisticados mas continua a vender amuletos contra o mau-olhado em quase todas as lojas.
4. Bósforo
Basta atravessar a estrada para se passar das compras, do assédio dos vendedores de um e de outro lado do Bazar das Especiarias, e se chegar aos barcos que circulam pelo Bósforo.
Repito-me: um retrato precisa de perspectiva, e a perspectiva precisa de alguma distância. Do Bósforo, estreito mítico e mitológico, ligação entre mares e continentes, ficam muito claros alguns contrastes de Istambul. Ao longo das margens, o contemporâneo, o moderno e o antigo, o milenar. Prédios de agora, construídos por gente do nosso tempo ou por outros que quase conhecemos e, no meio, a sobressair, a Torre de Galata.
E o som do motor ampliado no momento em que passamos por baixo de pontes. E as gaivotas a acompanharem o barco, a rodeá-lo. E a água remexida, rasto de espuma branca.
E, de novo, o balão de ar quente. Lá em baixo, a Capadócia.
A Turquia é enorme. A Capadócia é uma região histórica na Anatólia Central, que ocupa várias províncias da Turquia. A partir de Istambul, a forma mais confortável de lá chegar é por avião.
Aterrando de noite, como foi o meu caso, é no balão que se consegue ter uma primeira ideia da extraordinária transcendência daquela paisagem. Os guias turísticos sabem enumerar os diversos filmes de Hollywood que ali foram rodados, mas estar lá excede qualquer efeito especial. A beleza daquela terra deriva directamente dos elementos mais essenciais deste planeta onde, por obra de alguma circunstância imensa, os seres humanos têm o privilégio de habitar.
As elevações que se estendem até ao horizonte têm a forma que o vento e a erosão da intempérie escolheram. Um dos grandes símbolos da região, as chamadas "chaminés de fada", são colunas esculpidas por esses caprichos. Arredondadas pelo vento, mais ou menos gastas, consoante as diferentes camadas do solo. No fundo, um relógio a marcar séculos.
As rochas arenosas reflectiam a cor do dia, reflectiam a manhã, a tarde, o entardecer. Neste ponto prefiro a desordem da memória. Não quero fazer uma lista. Prefiro que os momentos continuem misturados. Estar no Vale de Ihlara, junto ao rio Melendiz, o marulhar do rio desenhado naquela hora, sem vozes, sem ninguém e, de repente, ao longe, o canto da mesquita a chamar para a oração, sobreposto às águas do rio. Esse momento não precisa de organização cronológica, os dados históricos podem ficar para mais tarde, ainda que, mesmo aí, as casas e igrejas trogloditas bizantinas, escavadas na rocha, causem impressão pelo tamanho do tempo que nos antecede, pela herança que recebemos por ser gente e por fazermos parte da humanidade.
Na Capadócia, há o impacto desse mistério: como viviam as famílias que se abrigavam na cidadela subterrânea de Kaymakli? Enquanto descia de galeria em galeria, separado dessas pessoas por séculos e, ainda assim, tentando colocar-me no lugar delas. Enquanto trepava às igrejas de Çavusi, avaliando o esforço de viver ali, rodeado por aquela única realidade, à mercê do céu e perguntando-me se não estaremos todos, seja onde for, mesmo que distraídos, à mercê do céu.
A Capadócia pede tempo a quem a visita. Em troca, oferece tempo também: um chá, em Ürgüp, aprendendo com os montes esculpidos. Tempo: o tamanho, a distância e a profundidade dos séculos de Göreme.
Talvez as perguntas que a Capadócia e Istambul levantam fiquem sem uma resposta que possa ser colocada em palavras. Mas talvez seja sempre assim com as perguntas que contam verdadeiramente. À medida que o passado se afasta, o eco das perguntas ressoa na memória. A poucos metros de onde escrevo estas palavras, está a mala à espera de ser desfeita. Aqui é o presente. Tenho a certeza de que enquanto existirem perguntas, haverá futuro.
Texto e fotos de José Luís Peixoto
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