Viagem até ao fim da estrada que passa à nossa porta
Num tempo de tantas dificuldades, começando pela saúde e, logo depois, por tantas privações que nos rodeiam, custa assumir a necessidade de viajar. Vivemos um período difícil, em que precisamos de hierarquizar o fundamental. Ainda assim, apesar dessas contingências, a liberdade não é um valor supérfluo, nunca será. A liberdade prometida pela viagem é um direito que custa a conquistar. Ao mesmo tempo, parece-me também muito valioso que não nos esqueçamos de celebrar. Neste verão de 2020, enquanto família, temos muito para celebrar: em primeiro lugar, o facto de nenhum de nós estar doente. Infelizmente, conheço muita gente que tem sido tocada por esta pandemia: amigos que precisaram de estar isolados daqueles com quem partilham casa, amigos que estiveram internados em hospitais, amigos que perderam familiares, amigos que morreram.
À sua maneira, os meus pais ensinaram-me esse sonho a que muitas vezes chamamos liberdade e essa forma de reconhecimento e gratidão que existe na celebração. À minha maneira, também quero transmitir essas lições aos meus filhos.
Nestas semanas de agosto, tínhamos planeado estar noutro continente. Íamos fazer uma daquelas longas viagens que deixam marcas. São planeadas com um ano de antecedência, pelo menos, e, depois de fazê-las, ficamos para sempre com episódios para contar. Não conseguimos fazer uma dessas todos os anos. Tínhamos 12 passageiros confirmados, incluindo o pessoal cá de casa, irmãs, cunhados e sobrinhas. Estava para ser uma viagem com muitos bilhetes de avião, assim como de outros meios de transporte, muitas estadias em diversos lugares, toda uma logística que asseguramos sozinhos. Começámos a desmarcar tudo isso em março, ainda não estão regularizadas várias dessas situações.
Não nos queixamos, porque estamos aqui. Felizmente, estamos todos de saúde. A minha mãe, com 78 anos, é a prioridade. Enquanto família, além desse aspeto essencial, ainda alcançámos muitas outras realizações. A nível pessoal, tenho para celebrar, entre outras coisas, um novo livro de poesia, inesperado, a poucos dias de chegar às livrarias, o primeiro livro de poesia que publico nos últimos 12 anos.
Foi assim que, por sugestão de um amigo, decidimos fazer algo fora dos nossos hábitos. Nunca tínhamos ficado num hotel tão perto de casa. Se tivéssemos esquecido alguma coisa importante, em pouco tempo conseguiríamos ir a casa e voltar. Ainda assim, tal como suspeitava, foi como se chegássemos a outro mundo. A contribuir para essa grande diferença estará, acredito, o facto de não termos ido a qualquer hotel desde o início da pandemia. Quase me tinha esquecido de vários detalhes que, ainda há tão pouco tempo, faziam parte da minha rotina.
Para além disso, impressiona a frequência com que passamos por lugares que ignoramos. Como qualquer pessoa que circule na Avenida Marginal perto de Cascais, passei centenas de vezes em frente do Hotel Cascais Miragem; olhei para lá, como muita gente deverá fazer, uma vez que o edifício chama bastante a atenção, mas a percepção mudou completamente quando chegámos para fazer o check in. Nesse momento, ganhou uma nova realidade.
À entrada, para além das mãos desinfectadas, tivemos um termómetro apontado à testa. Eu estava com 36,6 graus. A estreia diante desse termómetro-pistola, devolveu-me às minhas primeiras dúvidas: como é estar num hotel em tempo de pandemia? Não sei responder completamente a essa questão, mas sei como foi estar neste hotel específico. Reparei nos dispensadores de álcool frequentes, reparei nas indicações no chão, o lado da saída e da entrada em cada passagem, a circulação nos corredores a ser feita com máscara, reparei também na forma como a porta do quarto estava selada, demonstrando que a nossa entrada era a primeira depois da desinfeção. Em cada quarto, ao longo do dia, há uma hora em que se volta a desinfectar o quarto, define-se esse horário no momento do check in. Há outros detalhes: as espreguiçadeiras da piscina desinfectadas sempre que são deixadas por alguém, a área do SPA fechada, a piscina interior fechada e, no restaurante, os empregados de máscara apenas destapam os pratos à nossa frente. Quanto ao pequeno-almoço, pode ser no quarto ou, como nós preferimos, pode descer-se à sala onde, separados por uma vitrina, nos servem o que pedimos.
Nada disso impediu a nossa noite, manhã e duas tardes (adiámos o check out) de celebração. Talvez por estarmos perto de casa, por não termos visitas a fazer, aproveitámos tudo: desde o impacto da avassaladora recepção do hotel, arquitetonicamente grandiosa, até subtilezas como o perfume e a iluminação dos corredores. Não saímos sequer para jantar, experimentámos o restaurante Oásis Terrace, que fica ao lado da piscina e apreciámos tudo. No entanto, debaixo de sol, ao longo deste tempo, o lugar onde mais celebrámos o que temos para agradecer foi a piscina. Tenho a impressão de que o próprio hotel está todo construído à sua volta, é o centro de tudo. O hotel envolve-a, deixando um lado livre para o oceano e para a baía da Cascais. As varandas formam um anfiteatro disposto sobre estes três espetáculos: piscina, oceano, céu.
Foram uma noite, uma manhã e duas tardes perfeitas. É compreensível que não se use este adjetivo com frequência, é um adjetivo absoluto. No entanto, a felicidade, no momento em que é sentida, também é absoluta. Por isso, esse é um adjetivo justo neste caso.
Escrevo estas palavras ainda aqui. Ouço as vozes da Patrícia e da Vitória noutra divisão, não sei o que dizem. Há pouco, entre dois parágrafos, passei pelo André, estava sentado na cama a ler, ainda deve estar. Quando levanto o olhar, tenho a Baía de Cascais à direita e o mar até ao céu, há veleiros parados, barcos a motor que deixam um rasto branco, dois nadadores de longa distância passam a arrastar uma bóia que assinala a sua presença. Uma aragem faz as copas das palmeiras agitar-se lentamente. Vale a pena celebrar este instante. Escrevo estas palavras para não esquecer.
Texto de José Luís Peixoto
Fotografias de Patrícia Santos Pinto
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