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  • José Luís Peixoto

DESERTO DO DUBAI, EMIRADOS ÁRABES UNIDOS

Diante do tempo


Já estávamos no balão de ar quente há cerca de meia hora quando, de repente, deixou de ser novidade. A três mil pés de altura, número que o piloto repetia frequentemente para o rádio, a vista do deserto do Dubai mantinha-se serena. O sol continuava a subir no céu, abandonava o vermelho com que nasceu e, aos poucos, iniciava a força da sua combustão branca, incandescência refletida na areia. Ao identificar esse momento, a mulher picou o telemóvel com a ponta do indicador, acertou os auscultadores nos ouvidos e começou a ver a telenovela.


Parecia tratar-se de uma telenovela. Eu estava a espiá-la sem som, com algum distanciamento social e, claro, não tinha visto os episódios anteriores. Era uma mulher com véu, talvez de um país vizinho, segurava o telemóvel diante do rosto. Estranhei e, logo a seguir, reprovei o que me pareceu ser uma desvalorização daquele momento: estar ali, ter aquela paisagem deslumbrante ao dispor e escolher o ecrã do telemóvel.

Fiquei alguns minutos nessa censura quando dei conta que, entre os passageiros daquele cesto, a minha atitude não estava a ser muito diferente dela. Também eu desperdiçava aquela oportunidade, segundo a segundo. A atenção dela numa série no telemóvel, a minha atenção nela. Não foi para isso que acordei às quatro da manhã e que, logo a seguir, passei frio sob o ar condicionado gélido de um autocarro, durante a recolha de casais em hotéis na madrugada do Dubai.

Com essa constatação, voltei à paisagem. O balão desceu um pouco, o que permitiu voltar a distinguir a nitidez das dunas, escamas na distância, padrão infinito, a elegância das linhas afiadas no topo de cada duna, linhas onduladas e certas. Como em filmes da minha adolescência, voltei a imaginar a ideia assustadora de vaguear naquele deserto sem fim, caminhar naquelas dunas, náufrago do sol, boca seca, areia fina a passar entre os dedos.


Acompanhadas por um rugido, chamas eram lançadas no interior do balão por decisão séria do piloto. Aqueciam-me as costas e a nuca. De certeza que alguém já as comparou com chamas cuspidas por dragões. Imediatamente depois, talvez por contraste, o silêncio era mais brando, flutuávamos nele.

Este planeta, esta vida. Tive pensamentos com esse tamanho.


Assim chegou o momento em que o piloto nos pediu que adotássemos a postura de aterragem, tal como tínhamos aprendido antes de entrar no cesto. Essa posição faz doer os músculos das coxas e alimenta alguma ansiedade. Contudo, após alguns segundos, aterrámos com calma e decisão.

Enquanto esperávamos pelo jipe que nos devolveria ao autocarro, reparei de novo na mulher, continuava fixa no telemóvel. Quantas vezes me terei distraído diante de grandes oportunidades? Estar a poucos metros de Guernica e perder tempo a reparar em imperfeições do prosaico à minha volta. Hoje, esqueci essas imperfeições, apenas recordo o deslumbramento de estar em presença dessa obra de Picasso.


Provavelmente, no futuro, só recordarei a mulher que hoje assistia a uma telenovela a três mil pés de altitude quando me cruzar com estas palavras onde a descrevo. É certo que não esquecerei a grandeza do deserto. É enorme, infinito talvez, e não, não é esterilidade ou morte, é um dos grandes elementos que a natureza contem. É tempo.








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