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  • José Luís Peixoto

CIDADE DA PRAIA, CABO VERDE

Atualizado: 30 de out. de 2020


Gramática do mar a estender-se sobre a areia







Nos dias mais nítidos, da janela da minha casa, era capaz de ver a Ilha do Fogo. Mesmo depois de mar e mar, lá tão ao fundo, o vulcão continuava a ser capaz de impor seriedade. Nessa mesma paisagem, mais perto, logo ali, estava a Praia de Quebra-Canela. Praia de mar, claro. Em Cabo Verde, quando se diz apenas "praia" está a falar-se da Cidade da Praia. Todas as outras, com areia e ondas, são praias de mar. Nessa que via da janela da minha casa, Quebra-Canela, aprendi muito. Em certos fins de tarde, longos, de postal, passeava descalço e tirava dúvidas de crioulo com professoras e professores improvisados com quem, logo a seguir, tomaria um aperitivo numa esplanada.



Esse não era o único lugar onde aprendia. Nos dias de semana, começava às sete e meia da manhã a aprender crioulo com os meus alunos. Os cumprimentos que recebia nos corredores do Liceu Pedro Gomes variam entre "é modi?", se me falavam em badiu — crioulo de Santiago e das ilhas do Sotavento — ou "é manera?", se me falavam em sampadjudo — crioulo de São Vicente e das ilhas do Barlavento. Ambas as formas serviam para me perguntar como estava. Eu estava muito bem, tudo drêto. Apesar de diferenças importantes, estes dois grandes grupos do crioulo partilham o essencial da sua estrutura. É por isso que todos se entendem e que as conversas entre crioulos distintos são quotidianas, permanentes, estão a acontecer neste preciso momento.



Aprender uma língua de ouvido é uma experiência de vida. Antes, no início, entendia aquilo que todos os portugueses entendem quando se esforçam. Depois, aos poucos, comecei a perceber algumas expressões, algumas frases inteiras. Depois, quase de repente, compreendia tudo e, soltando a língua, descomplexando-a, era capaz de dizer tudo o que queria dizer, tanto em badiu, como em sampadjudo. A apoteose do meu crioulo, aconteceu quando, pela primeira vez, alguém achou que eu era cabo-verdiano. Foi numa carrinha Hiace, a servir de transporte público, na Ilha de Santo Antão, entra Ponta do Sol e Porto Novo. Essa foi a primeira de muitas vezes. Em cada uma dessas ocasiões, eu regalava-me e, vaidoso, fazia por mostrar tudo aquilo que sabia. Quando me chamavam "Badiu branco", eu sentia orgulho.




Apesar de regressar a Cabo Verde quase anualmente e de encontrar amigos cabo-verdianos em Portugal, uso o crioulo que aprendi sobretudo para falar comigo próprio. Com essa língua, sou capaz de levantar dentro de mim todo o tamanho daquela paisagem, daquela gente. Com essa reza privada, consigo apaziguar um pouco da falta que me faz olhar a Gamboa desde lá do cimo do Plateau, na Praia, caminhar pelo meio de tudo no mercado da Sucupira ou, no Mindelo, dar voltas infinitas à Praça, regressar a pé desde a Laginha, o xlep-xlep dos chinelos de enfiar no dedo. Após alguns meses de Cabo Verde, eu sabia que tinha ganho para toda a vida um lugar do qual iria sempre sentir falta. Não é por acaso que, em crioulo, também existe aquela palavra que tantas vezes julgamos intraduzível: "saudade" em português, "sodadi" em crioulo.








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