Casa Branca, Sousel
Eu acompanhava sempre o meu pai.
Lembro-me de quando as ruas ainda não estavam pavimentadas, ruas de terra e pedras soltas. Essa é uma memória antiga, verdadeira, não é uma memória construída porque nunca ninguém me descreveu as ruas que recordo. As histórias que o meu pai repetia não obrigavam a essa descrição das ruas por pavimentar. Essa é uma memória minha. Eu era muito pequeno, tinha quatro ou cinco anos e, no entanto, desde então, não há uma vez em que regresse lá e que não me lembre dessa imagem.
Esta era a casa dos teus avós, dizia o meu pai sempre que passávamos diante da porta e, ao mesmo tempo, sem palavras, transmitia também a importância dessa informação, comovia-se sempre um pouco. Na terra onde nasceu, em Casa Branca, no concelho de Sousel, o meu pai comovia-se com muitos detalhes. Quando se juntava aos meus tios, contavam histórias durante horas, repetiam-nas, e ora lhes dava para rir, ora lhes dava para chorar.
Culpavam o vinho tinto ou qualquer outra criatura que não tivesse voz para se defender. Mas isso era já depois das lágrimas lhes terem escorrido pelas faces, avermelhadas pelo vinho ou pela emoção. Com cinco anos, com dez anos, com quinze anos, eu ficava sempre impressionado quando os via chorar. Entre tios e primos, podia juntar-se quase uma dúzia de homens, com barba por fazer em dias de trabalho, ou perfumados com after-shave em dias de festa: uma dúzia de homens a chorar.
Em algum momento das voltas que tínhamos para dar, entrávamos na sala da minha tia, única menina numa casa de rapazes, ela e cinco irmãos. Tantos anos depois, o meu pai e os meus tios mantinham esse cuidado intacto. A minha tia de porcelana chamava-me o mesmo nome que chamava ao meu pai, a mesma pronúncia, a mesma maneira.
O meu pai era o filho mais novo da família e eu era o seu filho mais novo. O meu pai tinha sobrinhos que eram quase da sua idade. Esses primos tinham filhos que eram quase da minha idade, primos elevados ao quadrado. Quando entrávamos em Casa Branca, eu sentia que todas as pessoas com que nos cruzávamos eram minhas primas.
Quando o meu pai andava atrás da minha mãe, chegou a ir de bicicleta entre a terra dele, Casa Branca, e a terra onde foi morar e onde eu nasci, Galveias. Quem não sabe medir mundos, pode achar que são lugares separados apenas por algumas dezenas de quilómetros, que a estrada é boa. Custa explicar a quem não tenha ligação com a terra, com o chão, a grande diferença que fez na vida do meu pai mudar-se de uma aldeia para outra, deixar de viver no lugar de onde era.
Nas histórias que me contou até que as decorasse completamente, o meu pai queria que eu soubesse, que não me esquecesse. E sei que essas histórias aconteceram naquela casa, por detrás da porta por onde passávamos, naquelas ruas de terra e pedras soltas, ainda por pavimentar. E não me esqueci de cada uma delas, lembro-me de estar lá, em Casa Branca, a assistir a cada uma delas, a vivê-las, mesmo quando aconteceram muito antes do dia em que nasci.
Essas, claro, são memórias construídas, o que não é de estranhar porque o meu pai era um construtor, construiu-me.
Texto de José Luís Peixoto
Fotografias de José Varela
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