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  • José Luís Peixoto

BISSAU, GUINÉ-BISSAU

Atualizado: 30 de out. de 2020

Bissau




Fecho os olhos para tentar adormecer, mas vejo ainda as cores e os padrões, panos enrolados à volta da cintura e da cabeça das mulheres. Usam chinelos de borracha pobre, a terra do chão é vermelha, poeira sobre os pés. As mulheres baixam-se, mergulham em alguidares de plástico. Nessa posição, inclinam as crianças que trazem às costas, presas por panos atados à frente, cores e padrões que ainda vejo. De encontro às costas das mães, as crianças dormem profundamente, o sol não as desperta, o calor que faz ferver o sangue não as desperta. As mulheres falam em crioulo umas para as outras, como se gritassem, ou gritando mesmo, mas sem raiva, deixando escapar gargalhadas, dentes brancos, bonitas estas mulheres. O crioulo não desperta as crianças. Abro os olhos.



Na escuridão opaca do quarto, imagino os ângulos das paredes e do tecto. Ouço ainda o crioulo, como um combate; reconheço algumas palavras entre sílabas, longas vogais abertas. E, aos poucos, sobrepondo-se, fundindo-se com esse crioulo, ocupando este espaço sem limites, infinito que alastra até onde se consiga imaginá-lo, o ritmo do batuque, mãos desencontradas sob a pele de vários tambores simultâneos. Passam toca-tocas na Avenida Amílcar Cabral, carrinhas que fizeram uma vida quase completa na Europa e que foram revendidas até chegarem aqui. Os rapazes que vão pendurados na porta traseira, de pé sobre o para-choques, cobram bilhete para o Enterramento ou para o Quelelé. É a partir do interior de um desses que se escuta o batuque, quantos tambores estarão a ser tocados lá dentro? Foram feitos cortes na chapa, têm a forma de losangos, não conseguem evitar a transpiração de todas os passageiros. O som das batidas atravessa os buracos e mistura-se com o trânsito. De repente, se o rapaz do para-choques abre a porta para entrar ou sair alguém, ouve-se com mais força, enche tudo e, logo a seguir, quando a porta se fecha, volta a abafar-se, prosseguindo entre táxis e outros carros amolgados. Como um coração da cidade ou, neste quarto, como o meu coração.


Fecho os olhos outra vez. Vejo ainda as longas árvores, ramos atirados de encontro ao céu; vejo ainda as crianças, sorriem e olham-me com a mesma curiosidade com eu as olho a elas; vejo ainda os vegetais sobre tabuleiros no Mercado de Bandim, baldes de requeijão, montes de roupas usadas noutros países, montes de sapatos em segunda mão, segundo pé; vejo ainda um rapaz sentado no chão, a fazer pequenos cartuchos com papéis coloridos e, depois, a juntá-los numa coroa funerária de papel; vejo ainda o meletcho, gigante de andas; vejo ainda as estradas de terra, os carros a subirem e a descerem os buracos das estradas de terra que cobrem a cidade.



É de noite, acredito que deveria adormecer agora, mas não consigo apagar Bissau da vista, descolá-la da pele. Na ponta dos meus sentidos, é ainda de dia, treme ainda o sol, é incandescente, abrasador e, aos poucos, desorientado, deixo de saber se tenho os olhos abertos ou fechados, se vejo para fora ou para dentro.








Texto e fotos de José Luís Peixoto

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