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  • José Luís Peixoto

TBILISI, GEÓRGIA


O descobrimento de Tbilisi



A água é pesada. Lança-se lá de cima, cai ao longo da cascata e afunda-se com toda a força numa revolução de espuma. É como um descarregamento de qualquer coisa sólida, pedras talvez, é como um rugido de trovões constantes, como uma voz da terra ou uma zanga de Deus. Esse espetáculo é assustador e belo. Há jorros de água que congelaram a meio da queda, permanecem brancos e suspensos, como esculturas delicadas do inverno; há também gelo que copiou as formas das rochas, cobrindo-as, suavizando os seus contornos na pureza absoluta do branco. Detenho-me perante esta cascata como se, de repente, o mundo inteiro ganhasse grandiosidade.


Cheguei aqui, caminhando ao longo de um pequeno curso de água. O ar da manhã brilha, tingido levemente pelo cheiro de enxofre, a que já me habituei. Através de uma passagem bem nivelada, segui na direção oposta à água. Os dois lados desse caminho são altas paredes de terra cortadas abruptamente, como se uma faca gigante tivesse descido das alturas para mostrar as diferentes cores e camadas dessa terra. É preciso levantar bastante o rosto para conseguir ver uma tira de céu. Lá no topo, a dezenas de metros, as casas chegam mesmo até à última linha desse morro, penduram varandas sobre o precipício. Do outro lado, também lá em cima, árvores aproveitam a luz do sol e fazem crescer raízes, que se estendem nessa parede de terra, que contornam rochas e se dirigem à água.


Esta natureza encontra-se na zona de Abanotubani, pouco depois dos banhos sulfúricos. É para aí que a água da cascata se encaminha. Esses banhos são uma tradição de séculos. Neste inverno de temperaturas negativas, o morno da água e as suas características minerais oferecem uma experiência reparadora. A massagem opcional que se segue é mais energética do que se imagina, mesmo considerando os avisos dos amigos georgianos.


Tbilisi, a capital da Geórgia, tem hoje mais de um milhão e cem mil habitantes. Sinto que, no ocidente, sabemos pouco acerca das pessoas que caminham nos passeios destas avenidas. São gente de todas as idades, com vidas próprias e reais.


Quinze séculos. É preciso contemplar estas palavras por um instante, só assim se começa a ter alguma consciência, ainda que mínima, do seu tamanho. Quinze séculos, mil e quinhentos anos: essa é a extensão da história de Tbilisi. Ao longo deste tempo, a situação geográfica favoreceu o cruzamento de culturas e religiões nesta terra.


Como seria de prever, um bom lugar para saber mais sobre a cidade e o país é o Museu Nacional Georgiano. Ao longo de vários andares, esperam-nos objetos e marcas dessa história de séculos. No último andar, esclarece-se um dos equívocos mais comuns acerca da Geórgia.


O Exército Vermelho ocupou Tbilisi pela força em 1921.



Hoje, confundir a Geórgia e a Rússia é uma ofensa à memória dos muitos que morreram durante essa invasão e daqueles que resistiram durante todo o período soviético, presos, exilados ou mortos. Talvez o facto de Stalin ter nascido na Geórgia possa contribuir para esse erro, ainda que, de certa forma, ajude a agravá-lo.


A fronteira com a Rússia, a norte, é de difícil acesso devido à cordilheira do Cáucaso, com elevações que chegam a atingir os 5000 metros de altitude. Mais desimpedida é a circulação a partir do sul, nomeadamente do Azerbaijão, da Arménia ou da Turquia.


As culturas georgiana e russa têm diferenças consideráveis. A língua georgiana não é eslava, o seu alfabeto não é o cirílico. Em março de 1991, após o fim da União Soviética, foi feito um referendo acerca do futuro do país. A independência venceu com 99,5% dos votos.


A poucas centenas de metros do museu, descendo a avenida Shota Rustaveli, chega-se à Praça da Liberdade, palco de inúmeros acontecimentos de grande significado na história da Geórgia. Hoje, no meio dessa praça, chama a atenção o monumento com um São Jorge e um dragão dourados. Este é um excelente lugar para começar um passeio pela cidade antiga, o centro histórico.


Uma fileira de típicas varandas georgianas, de madeira, com cores suaves, convida-nos a escolher essa direção. Com raízes asiáticas e árabes, a arquitetura tradicional tem um traço claro e, ao mesmo tempo, elaborado, repleto de detalhes. Neste caminho, acompanhando o exterior da muralha, do que resta dela, passo por algo que é muito comum em toda a cidade: estátuas de bronze e vegetação, árvores, pequenos jardins. A arte e a natureza colaboram com a calma de Tbilisi.


Entro na área muralhada pela rua do Teatro de Marionetas Rezo Gabriadze. O edifício é merecedor de uma visita, tal foi o cuidado posto na sua construção; com destaque para a torre, na qual o relógio é animado por bonecos que se mostram a certas horas. Esse mesmo cuidado fez do teatro e da sua companhia uma referência mundial nesta área e, sem dúvida, um espetáculo a que vale a pena assistir. Há a qualidade do texto, legendado em inglês, a engenhosa interpretação e, claro, a mestria colocada na construção das marionetas e restantes adereços, verdadeiros objetos de arte.


Logo a seguir, fica a Basílica Anchiskhati, construída no século VI, a igreja mais antiga de Tbilisi. Esse é um templo da Igreja Ortodoxa Georgiana, como na maior parte dos locais de culto da cidade. Ainda assim, fruto do já referido cruzamento de culturas, esta é uma cidade onde também existem igrejas católicas, sinagogas e mesquitas, a pouca distância umas das outras, em perfeita convivência.


As mulheres são convidadas a cobrir a cabeça com um lenço e, por sua vez, os homens devem descobri-la, retirando chapéus. O odor a incenso está impregnado nas pedras. Há um momento da liturgia em que o sacerdote faz uma volta agitando incenso a arder. Com sorte ou planeando horários, vale a pena assistir-se a uma dessas celebrações, acompanhadas por coros polifónicos, com o sacerdote sempre virado para o altar.


Pouco depois, chegamos às margens do rio Kura, à Ponte da Paz. Inaugurada em 2010, a aparência desta ponte pedonal contrasta radicalmente com o centro histórico. Desenhada pelo arquiteto italiano Michele De Lucchi, que também criou vários outros projetos recentes muito visíveis na cidade, tornou-se uma nova atração para os visitantes. Muitos sobem para apreciar a própria ponte e, claro, a vista de Tbilisi e do Kura.



De regresso à cidade antiga, não é preciso caminhar muito até à Catedral Sioni. Presume-se que foi edificada originalmente no século VI ou VII, sabe-se que foi destruída e reconstruída por diversas vezes. A atual estrutura data do século XIII. Esta igreja tem especial significado para os georgianos porque é aqui que está guardada a cruz que, segundo se crê, pertenceu à Santa Nino, que foi quem trouxe o cristianismo para a Geórgia. De acordo com a lenda, a cruz é feita de ramos de videira, atados com o próprio cabelo da santa.


Na Catedral Sioni, a todas as horas, há um silêncio grave e há mulheres vestidas de negro a acenderem velas muito finas. A seriedade dessas orações e dessas pequenas chamas ajuda a iluminar as riquezas da igreja. As sombras dissipam-se um pouco sobre os frescos das paredes. Os ícones, de influência bizantina, sabem ouvir quem se aproxima a sussurrar preces.


A devoção na Igreja Ortodoxa Georgiana é solene e intensa. De regresso às ruas, tudo é novo. Há um instante de surpresa. A claridade ou os movimentos livres das pessoas fazem renascer o mundo.


O centro histórico, com detalhes de várias épocas nas fachadas, transporta-nos no tempo. Especialmente interessantes são os caravançarais. Este era o nome dado aos albergues onde pernoitavam as caravanas que aqui passavam, mercadores que seguiam a rota da seda. Hoje com outras funções, esses edifícios têm pátios interiores rectangulares, com as características varandas coloridas de madeira.


O comércio atual é outro. Após a Catedral Sioni, chega-se a ruas onde se pode comprar produtos regionais ou escolher um restaurante. Entre os produtos georgianos mais apreciados, não pode faltar o vinho. A Geórgia é uma das regiões vinícolas mais antigas do mundo, contando com cerca de 400 tipos de uva. A churchkhela é também um dos produtos inevitáveis. Penduradas em grandes quantidades em todas as lojas de artigos georgianos, têm a aparência de velas mas, na verdade, são fios de nozes cobertos por uma pasta de uva, que é deixada a secar até atingir a consistência adequada.

Toda a cozinha georgiana é, aliás, bastante original. Há as entradas, os queijos, os tipos de pão, as saladas, as sopas, as carnes ou o peixe, que chega do Mar Negro. Entre tanta escolha, os khinkalis são imperdíveis. Tratam-se de uns pastéis de massa, recheados com carne e caldo.


Então, talvez com a barriga cheia, pode continuar-se o caminho para a Praça da Liberdade, e completar um círculo ou, melhor, pode atravessar-se uma ponte sobre o Kura, ao lado da Catedral Matekhi, e chegar-se à bilheteira do teleférico.



O bilhete é barato, custa poucos laris, a moeda georgiana. Devagar, sobrevoo o rio e a cidade antiga. As ruas por onde passei parecem estreitas e pequenas lá em baixo. Outros, semelhantes a quem eu era há pouco, continuam nesses caminhos. Olho-os e acredito que sou capaz de compreendê-los.


Na Fortaleza de Narikala, na minha pele, há uma aragem gelada, este é um inverno impiedoso. Ao longe, há montanhas brancas, picos de neve. A nitidez da distância leva-me a acreditar que, talvez consiga distinguir Mtskheta, a cidade que foi capital da Geórgia antes de Tbilisi, também banhada pelo Kura; acredito até que sou capaz de distinguir a igreja Jvari, no topo de uma colina, a cerca de vinte quilómetros. Mas talvez seja apenas a minha vontade de ver essas paisagens.


Estou tão longe de casa. O horizonte é imenso. A minha casa existe muito depois dessa linha. No alto da Fortaleza de Narikala, sobre Tbilisi, sei que a minha casa existe, apesar da sua realidade remota. Quando regressar a casa, Tbilisi será também assim, de novo remota, mas a partir de hoje saberei para sempre que existe.





Fotos de José Luís Peixoto, Denis Arslanbekou, Mahmoud Sayed e Radmila Miheen

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