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  • José Luís Peixoto

SÓFIA, BULGÁRIA

Atualizado: 2 de jan. de 2021


Um certo tipo de romantismo






Estávamos apaixonados, estávamos na Bulgária. De dia, ao tentarmos tirar cafés em máquinas de moedas com as instruções em alfabeto cirílico, admirávamo-nos com o que saía nos copos de plástico; de noite, queríamos saber para onde iam todas aquelas loiras que usavam roupas compradas em boutiques onde apenas se escutavam êxitos dos anos 80 – Life is Life, Tarzan Boy, etc. Quem se empenhou em responder a esta dúvida foi um amigo português que vivia em Sófia.


Eu sei que qualquer lugar é bom quando se está apaixonado mas, entre os melhores, aposto que quem refere Veneza ou Paris nunca esteve apaixonado em Sófia. Era o fim do inverno, o início da primavera. Por isso, as ruas estavam apenas gélidas. Sentia-se que os búlgaros saíam de um tempo muito mais frio, percebia-se pelo tipo de sorriso. Após o jantar de Sábado, estávamos num carro — techno no auto-rádio — em direcção a um bar. Vodka de baunilha, foi nesse bar que experimentei vodka de baunilha pela primeira, pela segunda e pela terceira vez. Ainda não era meia-noite e precisávamos de um lugar onde se dançasse. Juntou-se ao grupo uma búlgara que falava francês e que nos indicou o caminho para um lugar que lhe parecia corresponder à descrição do que procurávamos. Mais carro, mais techno e chegámos à entrada de um night-club. Os seguranças da porta são grandes em qualquer parte do mundo e carecas quase sempre. No interior, em mesas, estavam grupos de casais, passavam dos cinquenta, pediam whisky com gelo a empregados fardados, olhavam para um palco onde cubanos dançavam salsa. Os búlgaros apreciavam as pernas das cubanas, as búlgaras seguiam os rabos dos cubanos em calças de cetim. Quando acabaram as acrobacias, o palco ficou vazio, mas a salsa continuou. Então, o palco foi-se enchendo de búlgaros descoordenados, a “dançarem” salsa. Não tivemos dificuldade em cansarmo-nos. Queríamos um lugar mais parecido connosco. Queríamos tudo.


Após minutos e outra viagem, estávamos a descer as escadas de uma cave. Comovemo-nos com o talento da vocalista de uma banda ao vivo. Cantava com uma entrega que, àquela hora, parecia excepcional. Havia universitários a falarem de qualquer assunto que desconhecíamos, poucos aplausos no fim de cada canção. Ficava um silêncio de palmas desencontradas. Acreditámos que merecia um público mais entusiasta, nomeámos vários exemplos de vocalistas conhecidos com menos poder vocal. Quisemos falar com ela, dizer-lhe que acreditávamos mesmo que tinha futuro, mas não houve tempo porque, após qualquer coisa, já estávamos de novo no carro, a caminho de um lugar que, afirmava a búlgara, era a grande sensação da noite de Sófia.


Chegámos. A entrada não foi difícil, não se viam muitos estrangeiros nas noites de Sófia. Paredes brancas, a palavra design, rostos que faziam questão de não se admirar com nada e que, no entanto, estavam atentos a tudo — um emaranhado invisível de relações, como naquele jogo infantil em que se formam figuras geométricas com um fio à volta dos dedos que, depois, se passa para as mãos de outro. Pessoas que nunca tinham os olhos muito abertos, que baixavam as pálpebras até meio e que viam tudo assim, com aparente desinteresse. A música não era má, mas também não era boa. Havia uma ecologia de emoções presente em tudo. Ainda não era bem isto que queríamos. Afinal, nós estávamos apaixonados, prestes a explodir.


Começava a ser tarde. A búlgara desistiu, despediu-se: au revoir, à bientôt. E fomos levados ao único lugar que ainda estava aberto, a última possibilidade da noite. A entrada era numa estação de metropolitano, entre lojas fechadas. Havia uma multidão a entrar e uma multidão a sair. Os que saíam estavam transpirados e vestiam camisolas grossas de lã e casacos. Os que entravam, estavam eufóricos, como nós. Era uma discoteca imensa, com centenas de metros de balcões. As pessoas dançavam em cima dos balcões e em todos os lugares onde houvesse espaço. Foi o que fizemos até fechar. Estávamos apaixonados. Dois anos e meio depois, haveríamos de ter um filho.






Texto de José Luís Peixoto

Fotos de Hristo Sahatchiev e Tatiana Santos

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